sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Livre de tudo.

Destinado a evitar conflictos pessoais, chegando até a ser bastante incómodo ao tentar precisamente evitá-los, Ciza encontrou-se perante um pedinte esquivo e pouco confuso. Lançando-lhe um sorriso feio, mas que espelhava uma alma satisfeita, o velho alegre procurou respeitar o olhar invejoso de Ciza, que contemplava a felicidade de liberdade total. Claro que alguém como Ciza, que delimitava o seu espaço e o seu tempo segundo ordens específicas e invioláveis, dedicava pouco tempo a contemplações deste género.
Descendo a rua, Ciza orientava o seu olhar, sempre rápido e assustado, escolhendo o melhor percurso a tomar, reparando no homem soturno que sentava-se no passeio, de charuto apagado na boca, e na mulher que berrava aos filhos por chegarem demasiado cedo a casa depois de um dia de pequenos e médios assaltos, desviou os pés das manchas negras do habitat urbano. Que o seu corpo se tripartia numa coordenação angélica entre os pés, os olhos, e o cérebro, era colocar-lhe um rótulo. Para Ciza era um exercício que exigia um esforço físico inchado, ao ponto de as suas funções se tornarem automatizadas. Isto era, para Ciza, tanto uma maldição como uma benção.
Muitos foram os caminhos que os seus pés e olhos percorreram, variando consoante a disposição dos intervenientes. Tinha medo da rua, dos inconstantes e dos constantes, sentia todas as manobras, olhares, pensamentos, buzinões, gritos, sorrisos, e os dedos que lhe apontavam eram como as cordas que, pensando estando nas mãos, permitindo nadar com os membros inferiores para não se afogar, afinal estão nos pés, como num pesadelo. Tudo lhe sufocava.
As beatas juntavam-se entre o meio-dia e as duas da tarde na esquina na rua ao fundo da grande avenida que Ciza percorria todos os dias, e estivera previamente a submeter-se a mais doses diárias de humilhação por parte dos míudos e das prostitutas da rua acima. Ciza respirava, a cada momento destes que passava, como se nadasse à tona e respirasse até aos seus pulmões, secos de ar, rebentassem. Ele evitava tudo e todos, mas as inspirações fortes e repetidas causadas pelo fluxo excessivo de oxigénio dava-lhe calafrios e tonturas. De joelhos sobre a calçada do passeio, a virtude de homem que evitou todos os mal-entendidos, críticas, humilhações e desentendimentos estendeu-se ao comprido, e Ciza respirou fundo, não como um homem que estava prestes a afogar-se, mas como alguém que deixa tudo para trás, na mesma, como devia de ser, e sempre será, por mais que se evite mudar ou manter igual.
Os paramédicos que socorreram Ciza depressa se aperceberam que estavam perante uma alma perdida e um cadáver pequeno e contorcido, e não conseguiram consentir sobre uma altura em que, no passado, tivessem testemunhado um caso com este. Nunca se tinham deparado com um morto a sorrir.

Tomás J. A. Pinto

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