terça-feira, 12 de junho de 2007

Espiral

E então possuiu-me uma vontade, e uma noção de estar a subir. Não uma certeza, pois uma noção não equivale a uma certeza. Era mais como uma daquelas sensações em que não sei bem se estou a cair se estou a subir. O meu estômago palpita, a querer saltar-me do corpo e atravessar as minhas vísceras, num acto de vingança mereçida. Ele não pedia para estar ao saltos, mas para ser justo (e para mais logo não ficar acordado com a dúvida “será que ele estava a vingar-se?”), nem eu. Estou a subir, tenho a certeza.
Então indicam-me o caminho. Alguém de capuz, que claro não quer que lhe observe as feições desconcertantes de um monge mal-nutrido. Sabe que o vou criticar, o sábio. Hoje em dia ninguém precisa de passar fome (deve ser uma penitência ou voto sagrado). O caminho é uma escada espiralada de pedra, esguia e húmida. Tenho medo de escorregar e partir o fémur. Vertiginosa e mereçida diz-me o tal protegido que a vista é. Subo, subo, a escadaria húmida. Dizem que é especialmente prodigiosa a vista. Subo.
Nunca fui muito daqueles que aprecia vistas. Pelo menos não tanto como aprecio a viagem em si. Prefiro olhar para as escadas, e perguntar quem a construiu, e colocar-me nos pés e nas mãos de quem as fez, que na pequena esperança que tinha esperava por alguém que perguntasse quem fez a escadaria espiralada. Pobre coitado, a História não te registou o feito.
As janelas pequenas ao longo do caminho são batoteiras. Dão amostras da paisagem, da pintura elementar, e enganam quem sobe ao cimo. As amostras, quando as juntamos, dão-nos a obra, e sentimo-nos enganados no topo do mundo.
Falta pouco, diz-me o esfomeado. Fico a ouvi-lo salivar e vejo-lhe fraquejar. Vou-o criticar, ele sabe. Ninguém precisa de passar fome. O diabo mal se aguenta nas pernas magras, e as costas curvadas sobre o manto pesado são janelas de vislumbres batoteiros.
Falta pouco. Abro a porta que dá ao pátio da vista. As gotas de suor novamente arrepiam-me, saltando em saltos curtos pelas costas. Vejo a vista, mesmo diante de mim, e viro-me, sereno.
“Vai comer desgraçado”.

Tomás J. A. Pinto

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