segunda-feira, 8 de outubro de 2007

"Friends in the twilight"

Friends in the twilight. For Fil, Zé, Joana, Tânia e David.

For Fil, Zé, Joana, Tânia e David.




Original picture by Tânia, Sines 07.

Green thoughts

I see the world and it should be green.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Livre de tudo.

Destinado a evitar conflictos pessoais, chegando até a ser bastante incómodo ao tentar precisamente evitá-los, Ciza encontrou-se perante um pedinte esquivo e pouco confuso. Lançando-lhe um sorriso feio, mas que espelhava uma alma satisfeita, o velho alegre procurou respeitar o olhar invejoso de Ciza, que contemplava a felicidade de liberdade total. Claro que alguém como Ciza, que delimitava o seu espaço e o seu tempo segundo ordens específicas e invioláveis, dedicava pouco tempo a contemplações deste género.
Descendo a rua, Ciza orientava o seu olhar, sempre rápido e assustado, escolhendo o melhor percurso a tomar, reparando no homem soturno que sentava-se no passeio, de charuto apagado na boca, e na mulher que berrava aos filhos por chegarem demasiado cedo a casa depois de um dia de pequenos e médios assaltos, desviou os pés das manchas negras do habitat urbano. Que o seu corpo se tripartia numa coordenação angélica entre os pés, os olhos, e o cérebro, era colocar-lhe um rótulo. Para Ciza era um exercício que exigia um esforço físico inchado, ao ponto de as suas funções se tornarem automatizadas. Isto era, para Ciza, tanto uma maldição como uma benção.
Muitos foram os caminhos que os seus pés e olhos percorreram, variando consoante a disposição dos intervenientes. Tinha medo da rua, dos inconstantes e dos constantes, sentia todas as manobras, olhares, pensamentos, buzinões, gritos, sorrisos, e os dedos que lhe apontavam eram como as cordas que, pensando estando nas mãos, permitindo nadar com os membros inferiores para não se afogar, afinal estão nos pés, como num pesadelo. Tudo lhe sufocava.
As beatas juntavam-se entre o meio-dia e as duas da tarde na esquina na rua ao fundo da grande avenida que Ciza percorria todos os dias, e estivera previamente a submeter-se a mais doses diárias de humilhação por parte dos míudos e das prostitutas da rua acima. Ciza respirava, a cada momento destes que passava, como se nadasse à tona e respirasse até aos seus pulmões, secos de ar, rebentassem. Ele evitava tudo e todos, mas as inspirações fortes e repetidas causadas pelo fluxo excessivo de oxigénio dava-lhe calafrios e tonturas. De joelhos sobre a calçada do passeio, a virtude de homem que evitou todos os mal-entendidos, críticas, humilhações e desentendimentos estendeu-se ao comprido, e Ciza respirou fundo, não como um homem que estava prestes a afogar-se, mas como alguém que deixa tudo para trás, na mesma, como devia de ser, e sempre será, por mais que se evite mudar ou manter igual.
Os paramédicos que socorreram Ciza depressa se aperceberam que estavam perante uma alma perdida e um cadáver pequeno e contorcido, e não conseguiram consentir sobre uma altura em que, no passado, tivessem testemunhado um caso com este. Nunca se tinham deparado com um morto a sorrir.

Tomás J. A. Pinto

Defesas congénitas, nascidas da mente "matinas".

Nada nos assusta tanto como nós próprios, ou nós próprios distorcidos e tranfigurados. Mas o medo provém de situações em que sabemos que alguma coisa trágicamente penetrante tem a remota possibilidade de intervir, negativamente e pedagógicamente, sobre nós. As variedades com que essa possibilidade ocorre define os diferentes estádios de alteração comportamental. O arrepio, o receio, o medo, o terror, o pânico, que evoluem maioritáriamente do perigo ou da mágoa, representam esses níveis. Quanto mais descobrimos sobre nós próprios, mais temeremos, e haverá sempre a coisa mais insignificantemente possível, e impossível, para nos guiar, avisar e restringir.
Tomás J. A. Pinto
Imagem:
"Ghost" by Katsushika Hokusai.

Fisionomia.

Uma aparência rude e negligênciada permite juizos que comportam juizos com valores com os quais se são ajuizados certas características. Um negligência pertinente no caso de uma rude, simples e vaga, pessoa, e os juizos são pararelamente colocados em prós e contras. Que juizo correcto fará o juiz sobre o juizo de uma aparência?

Mea Culpa: quando é de todos, de ninguém, e particularmente minha.

Dignificando a dormência televisiva, anseio pelo comando, apenas para me aperceber de que este não existe, e amolecem-me as expectativas fulcrais ao conforto milenar da placidez ignorante. Os olhos semi-abertos, a garganta seca e a pele óleosa, buscam fagulhas brevissímas, que contrastam com a luz e o fumo. Devagar, com a lentidão com que uma sombra se constroi quando as nuvens levantam e se separam para acompanhar uns momentos de sol, uma presença quase física desperta dentro das imediações da sala, com ruídos sinuosos e confusos, avisando-me de que qualquer coisa se deslocou, que qualquer coisa está fora do lugar. A minha mão pálida avança e treme perante a presença, uma sombra que assusta ao distorcer a forma. Mas o medo apenas atinge o pico, e transforma-se em terror irreal e insensato, ao reparar que a forma distorcida, a sombra distante e imponente, como uma montanha que até então mantivera-se coberta, é a minha.

Tomás J. A. Pinto

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Diálogo sobre as particularidades do sono.

“Os sonhos são para os loucos. Perde-se tempo e a vontade diminui com a idade.” afirma o homem de aspecto ingénuo e frágil.
“Estás a baluciar o quê? Diz lá. Os sonhos são para os loucos… ou são os loucos loucos por perseguirem sonhos?” avança o estranho de casaco escuro de gola alta.
“Diz-me tu!” diz o homenzinho.
“Não, não. Espirra essas tuas explicações para outro. Tu é que falaste nisso, tu é que explicas o teu comentário.”
“Pois… pois sim, tens razão.” Salpica o homenzinho, cada vez mais nervoso. “Então os sonhos são para os loucos. Afirmei-o há cerca de um instante. Pois que tipo de coisas se passaram na vida de um homem para quando o olho fecha e o cérebro dorme, se passarem tais eventos ridículos e insensatos?”
O homem sombrio, que manuseava qualquer coisa brilhante na mão esquerda, levanta a cabeça de modo a olhar directamente nos olhos do homem, retorquindo. “Pois, sabes, os sonhos vêm da união entre os mecanismos do cérebro e a nossa, ou nem sempre a nossa, experiência. São os restos que não conseguimos assimilar durante a nossa actividade que é depois verificada pelo cérebro, por assim dizer.”
“Então os sonhos são para todos? Todos somos loucos, inteligentes, velhos, novos, e a perseguição dos sonhos, quando se deseja, pode ser um coisa boa, mas apenas se for dentro do reino do possível. Se não é possível, então é mesmo para os loucos.” A voz do homem frágil e ingénuo tinha estado a subir gradualmente até à forma de um grito.
“Não, não meu coitado! Os sonhos são presenças metafísicas de eventos do subconsciente. E tratados no nosso cérebro.”
“Então não confias nalguma entrega divina? Na mensagem de algo superior através de algum mecanismo sobrenatural, de que nós somos os receptáculos? Pessoas como tu são especialmente abertas a perspectivas semelhantes.”
“Não. E não tentes pensar que sabes alguma coisa sobre mim. Acredito que o corpo funciona de maneira a aguentar a pressão que, obviamente, não conseguimos aguentar. Todos dormimos. E porquê? Para descansar, especialmente o cérebro, mas sem nunca o desligar.” disse o homem sombrio, ao olhá-lo de lado e acendendo um cigarro. Afasta o fumo com um sopro e endireita-se, como se fosse discursar.
“A meu ver, e digo a meu ver, porque neste momento o que interessa não é o resto do mundo, mas nós. Mais ninguém interessa porque é indiferente o que o resto da população humanóide (humana de uma forma ou outra) posso fazer para evitar o que se vai passar aqui, esta noite. A meu ver, os loucos são considerados loucos por terem a coragem de fazer o que for preciso para evitar sentirem-se descontentes, tristes, deprimidos, até ao ponto de passarem por animais assustados e ignorantes, por coitados. Mas apenas assemelha-se assim, porque a grandeza de saber um coisa e avançar sobre ela é muito mais certa do que uma vida de mentiras.”
“Não podemos ficar apenas contentes pelo que temos, pelo que amamos, pelo que sonhamos, e apenas sonhamos?” chora o homem frágil, decepcionado com o rumo que a conversa estava a tomar.
“Podemos. Mas se esse contentamento que falas reside apenas nos sonhos, e para obtermos essa alegria tivessemos que concretizar os nossos sonhos? Aí já não seriamos loucos, pois não?” sorriu maliciosamente o homem dominante da conversa.
“Vejo que não respondes, por isso continuo. Eu sou louco. Eu corro nos calcanhares de um sonho. Já o concretizei, concretizo-o hoje, e continuarei a concretizá-lo. Para o resto do mundo aparento ser igual, normal, seu semelhante. O resto do mundo não interessa. E tu, e o teu comentário, não interessam.”
O homem frágil encolheu-se perante o homem sombrio. O ritmo das passadas dele juntaram-se consonânticamente ao ranger das cordas que o homem frágil tentava soltar, mas que se tornava mais díficil com o nervosismo espasmático e o pânico.
“Não vale a pena” e cortou-lhe um traço ao longo do pescoço, enquanto olhava para os olhos da sua vítima.
“Agora já não sou louco. Mas contente, seguro, como o resto do mundo.”

quinta-feira, 19 de julho de 2007


De volta à escrita.
Pausa feita.
Em breve mais coisas para os olhos absorverem.
Continuação da procura. A busca continua.
Procura do quê, dizem?
A minha expressão, expressividade, mensagem, [and what not]
[...] T. J. A. P. thanks'a'lot!

Mensagem ao [...]

São-me conhecidas duas artes. A arte de viver e a arte de morrer. Entre as duas há outras artes, que registam como fazemos e trabalhamos com o que nos é dado e tirado. Quer aceitamo-las como parte de nós, quer como reflexo de outros, crescemos de seres pequenos, vivemos, e voltamos a ser seres pequenos, insignificantes para outros, mas grandes para nós próprios, e isso é que nos define e é o que interessa.
Venho da terra, e voltarei para a terra. E por enquanto estou contente. Preso no meio.
Tomás J. A. Pinto

Medo.

A vida passa-me à frente dos olhos sobre as formas de alquímia, a velha arte do desconhecido e das perguntas que permaneçem não-respondidas. Sentado à janela, os olhos correm-me pelas folhas, aquelas a que são oferecidas duas cores. Uma, verde gasto, para a parte de baixo, e outra, verde intenso, para a de cima. O vento mexe e remexe-as, e assim nunca duas folhas de diferentes ramos estão juntas por muito tempo, e nunca elas irão saber se estarão mais alguma vez.
Enquanto sento à janela, imaginando as amizades de folhas e a união de moléculas de CO2 e O2 provenientes do encontro entre tubos de escape e o ar na estrada, os carros que passam acordam o meu cérebro com ruídos raspantes, que o meu cerebro assimila em agonia e irritação. O borbulhar da água a ferver, que coze a massa que serve-me de jantar, avisa-me um regresso ao estado normal, definido por outros de outras patentes, capazes de conceber e comandar o desígnio do destino, a que inevitávelmente iremos parar.
Estou sozinho, e as distrações são os meus consolos. Não posso permitir-me sossego, senão as memórias e os ecos voltam e deixam-me sozinho, profundamente sentado à janela, mas as distrações são distantes e os ecos são maiores. Não posso permitir sossego, e o meu corpo pede inconstância.
O meu maior medo é o silêncio.
Dão-nos duas cores. Temos a superfície, e possuímos outro aspecto, outra face, submersa. Outra cor. Há quem diga que se pensarmos muito numa coisa, encontramo-la. Possuis a consciência e o poder de encontrar as tuas cores? Vejo seres que só têm uma, seja ela a submersa, seja ela a aparente. Mas as duas? São os loucos? Ou serão eles demasiado inteligentes que deixam-se ficar, contentes com o conhecimento que só eles possuiem porque mais nenhum de nós algum dia poderá sequer conceber a noção de algo? O que interessa é a coragem necessária para ultrapassar, misturar as cores. Mas isso não me interessa, porque o que procuro é manter o medo. Medo de encontrar-me verdadeiramente. Medo de magoar alguém, ninguém, todos. Medo de não conseguir separar as vontades e os desejos. O silêncio ajuda e obstrui. É a ferramenta de procura, afastando as distrações. Mas também é o obstáculo, o sossego, a calma do mar que permite regressar a terra.
Silêncio. O que é? A ausência de som? A ausência de seres? A ausência de fricção e percepção, de recepção? A ausência de consciência?
A ausência de vida?

Tomás J. A. Pinto

terça-feira, 12 de junho de 2007

Os restos.


Bem pessoal, está na hora de uma pausa. A época de exames têm um preço e as cefaleias abundam. Procurarei fazer mais ensaios e divagações assim que me sentir repousado. Ultimamente tenho colocado muitas experiências digitais de fotografia no blog. Isto porque "custa" menos e na brincadeira encontro muitas coisas valiosas. Também é bom fazer uma pausa e deixar as sensações e experiências tocarem os nervos.
Até breve, meus caros.
Tomás J. A. Pinto

grelhavanca.



Espiral

E então possuiu-me uma vontade, e uma noção de estar a subir. Não uma certeza, pois uma noção não equivale a uma certeza. Era mais como uma daquelas sensações em que não sei bem se estou a cair se estou a subir. O meu estômago palpita, a querer saltar-me do corpo e atravessar as minhas vísceras, num acto de vingança mereçida. Ele não pedia para estar ao saltos, mas para ser justo (e para mais logo não ficar acordado com a dúvida “será que ele estava a vingar-se?”), nem eu. Estou a subir, tenho a certeza.
Então indicam-me o caminho. Alguém de capuz, que claro não quer que lhe observe as feições desconcertantes de um monge mal-nutrido. Sabe que o vou criticar, o sábio. Hoje em dia ninguém precisa de passar fome (deve ser uma penitência ou voto sagrado). O caminho é uma escada espiralada de pedra, esguia e húmida. Tenho medo de escorregar e partir o fémur. Vertiginosa e mereçida diz-me o tal protegido que a vista é. Subo, subo, a escadaria húmida. Dizem que é especialmente prodigiosa a vista. Subo.
Nunca fui muito daqueles que aprecia vistas. Pelo menos não tanto como aprecio a viagem em si. Prefiro olhar para as escadas, e perguntar quem a construiu, e colocar-me nos pés e nas mãos de quem as fez, que na pequena esperança que tinha esperava por alguém que perguntasse quem fez a escadaria espiralada. Pobre coitado, a História não te registou o feito.
As janelas pequenas ao longo do caminho são batoteiras. Dão amostras da paisagem, da pintura elementar, e enganam quem sobe ao cimo. As amostras, quando as juntamos, dão-nos a obra, e sentimo-nos enganados no topo do mundo.
Falta pouco, diz-me o esfomeado. Fico a ouvi-lo salivar e vejo-lhe fraquejar. Vou-o criticar, ele sabe. Ninguém precisa de passar fome. O diabo mal se aguenta nas pernas magras, e as costas curvadas sobre o manto pesado são janelas de vislumbres batoteiros.
Falta pouco. Abro a porta que dá ao pátio da vista. As gotas de suor novamente arrepiam-me, saltando em saltos curtos pelas costas. Vejo a vista, mesmo diante de mim, e viro-me, sereno.
“Vai comer desgraçado”.

Tomás J. A. Pinto

O conto do caminho.

Era, certa vez, uma rapariga medonha que procurava sapos. Procurava espreme-los e lamber-lhes as costas. Fugia, pelo mato, para fugir ao lar, medonho abrigo de medonha gente. Fugia à procura de sapos, com galhos atordoados frenéticamente a tentar fugir ao cabelo enrolado, atado em nós.
Ao correr pelos arbustros, encontrou um caminho. Era uma coisa invulgar, fora do sítio. Curiosa com o facto de haver um caminho onde não havia caminhos, perguntou aos ventos e às folhas quem o tinha feito. Entrou a correr pelo caminho, a fugir da casa medonha. A sua natureza bruta anseiava pelas respostas, mas não esperava por elas. O sapo corria-lhe nas veias. As elevações do sangue azul nos pulsos assustava-a, mas continuava determinada em encontrar as respostas no fim do caminho.
Era um arrastão de terra que compunha a fresca via, que depressa serpenteava para dentro da densa floresta, que de galhos frenéticos procurava abraçar almas de sangue vivo, quente, activo. À medonha rapariga nenhuns galhos queriam tocar. Afastavam-se com o vento, que subia com a noite, em chuvas de folhas e sombras. As primeiras gotas da noite comunicavam-lhe pensamentos, e a rapariga começou a chorar, lentamente, contida, na esperança de que as lágrimas seriam apenas as primeiras gotas da noite. Não contendo os soluços e as lágrimas, gritou um grito ecoante, como se a floresta fosse uma clareira de ruínas ancestrais. “Porque é que ninguém me quer? Estou viva e quero fugir! Porque é que niguém me leva?” gritou entre os soluços. Era uma floresta antiga, cheia de vida e segredos.
Caída no chão, com a chuva a manchar-lhe o vestido rasgado, sentiu um tremor, crescente. A intensidade do tremor uniu-se ao batimento do seu coração. Viu que estava no fim do caminho, e um sapo gigantesco aproximava-se dela.
“O que se passa, rapariga medonha?” perguntou suavemente o sapo, a proteger-lhe da chuva com o enorme braço. “O que anseias?”
“Quero fugir” disse a rapariga, deitada no chão.
“E porque não foges?”
“Porque não consigo, e não há caminhos”.
Rindo-se calorosamente, o sapo viu o brilho que este causara nos olhos da rapariga medonha.
“Mas eu faço caminhos, e posso ir e vir quando quiser. Tu também podes. É só quereres.”
“Mas…”
“Tu tens poder, rapariga medonha, e podes fazer o teu próprio caminho.”
“Mas eu não sei fazer caminhos. Ensinas-me?”
“Não.”
“Porquê? Porque não me ensinas. É o que eu quero mais no mundo.”
“Raramente sabemos o que queremos. E tu vais ter que descobrir o teu próprio caminho, e o teu próprio poder.”
“Mas eu sou apenas uma rapariga medonha, de uma casa medonha de gente medonha numa floresta de segredos.”
O sapo, rindo-se novamente, retorquiu. “Eu sou um sapo, sou grande e medonho. Sou uma criatura feia por natureza. Não sou mais do que isso, e no entanto sou livre e feliz.”
A rapariga, compreendendo o que o sapo quis dizer, levantou-se calmamente, pôs-se de bicos de pés e beijou o sapo.
“O que vais fazer agora, rapariga medonha?” perguntou o sapo.
“Vou fugir.”

Tomás J. A. Pinto

testing. TESTING [from the floor to the door]


sexta-feira, 1 de junho de 2007

crowds


CROWDS
. HuMAn covering is own little significant quarter of dirt.

Set apart form the rest of the creatures.

Human. Human. Human. Human. Human. Human. Human. Human. Human; Human Kind(ness). H.S.




(do grego agora - mercado + phobos - medo)



Lab rat. Maze. Lab rat. Maze. Lab rat. Maze. Lab rat: Maze.

ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ

Carnaval universal.

Sinto-me rodeado de pessoas. Talvez seja verdade, e as sombras carnavalescas que me rodeiam são estátuas vivas de carne, sem sentimento ou propósito, penduradas como carcaças de animais mortos, expostos no talho a uma terça-feira. Estão à espera que alguém os diga o que fazer, o que ser, quando respirar, e como. Apetece-me gritá-los. “Andem. Sejam, seus idiotas!”. Mas não consigo. As palavras não me saiem da boca. Não porque não queira. É que os meus lábios estão fechados sobre dentes serrados. Fui feito assim.

Um pombo senta-se no meu obro, e excrementa-o com os resíduos gástricos do seu pequeno almoço. Não haverá de ser a última vez.

A praça encontra-se menos agitada que o normal, mas as pessoas ainda não conseguiram largar o hábito dos passos altos e violentos. São tantas, e tantas. Eu permaneço, imóvel, rodeado de almas. Ocas, ocupadas, sãs, e nem por isso. O velho continua sentado no banco velho, olhos lacrimejados e vermelhos. Um mar de gente que não lhe lembra outros tempos. Os prédios, edifícios e fachadas são a sua companhia. Permaneçem. Permaneçem inalteradas. Uma breve vasculhadela à nostalgia pessoal e regressa à realidade. Um olhar permanente, leve e tedioso. A cara apoiada numa mão trémula, sem carne. Carne comida pelos dias. Antropofagia cruel. O que devia importar não resite, descartado.

Um rapaz olha o velho e pergunta-se se será assim, e eu verei a sua carne a ser comida pelos dias. Verei um rapaz a olhar para ele, a perguntar se será assim.

Eu permaneço e observo. Sou a testemunha imortal do plano inconstante. Das multidões. De onde as pessoas vão para existir, afirmar o seu grito presencial, e onde se sentem mais sozinhas, regressando com o velho sol a descer, numa luminosidade que gaba o seu lugar no universo. Central. Algo que eles não são.

Eu sou o sol do meu universo. Central. Eu sou a testemunha das multidões. Eu sou a estátua do meu universo. Sou a estátua de bronze decorativa. Permaneço, sem conseguir gritar de lábios fechados e dentes serrados de pombo ao ombro “Andem. Sejam, seus idiotas”.

Tomás J. A. Pinto

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Potencialidades imaginárias e definitivas.

Vasculho e percorro o meu corpo. A superfície de carne, pele e cabelos que protege o meu interior sagrado. O toque dos dedos percorre o braço ao encontro das extremidades nervosas do sentimento. Ásperas pinceladas de unhas na carne esplonteam vontades rigorosas de deformação, de poder. O meu corpo é meu, poderei fazer o que quero com ele? Somos definidos com a forma da nossa espécie, e nada mais. Concedem-nos forma inalterável e definitiva, o ser perfeito. A massa cinzenta do cérebro desdobra-se no potencial dominador de poder. O poder humano. O poder sobre os outros. Mas sobre os nossos corpos? Alvos de atentados vivênciais deformam e destroíem, externos à vontade individual. Quero crescer um braço no meu braço, estabelecer funcionalidade. Mas não posso. Eu sou como sou, e se não fosse seria atacado pelos outros individuos. Ser diferente hoje é ser igual amanhã. Quero formar a minha pessoa, e por dentro podemos ser o que quisermos, ninguém nos impede. Ninguém manda no pensamento, o progresso interno sacramente protegido. Quero ser perfeito. Por fora, aceito o que sou. Não altero o percurso do que me define. Sou humano, na vasta potencialidade que promete o afastamento do que é ser humano. Avançamos na distância. Ser humano é não ser humano. Poderá ser que um dia sejamos o nosso potencial máximo, o nosso ideal. O meu ideal.

Tomás J. A. Pinto

As realidades de perigo e do fim das vidas.

Numa tal manhã de singular beleza, a chuva fazia pouco mais que molhar a gola do enrugado casaco. Ao escorrer as arrepiantes gotas frias pelas costas, Samuel era cruelmente relembrado de que era segunda-feira. Encolhendo os ombros agitou-se para afastar os arrepios e a má disposição, que o belo dia não deixava de o lembrar através do reflexo dos vidros dos prédios. Montanhas e montanhas de metal. Homens e mulheres que funcionam uns como peças, outros como óleo, impedindo que a máquina industrial aqueça demasiado ao ponto de fundir as peças, numa confusão resultante de uma má gestão de recursos.
Indubitávelmente, o elevador subia lentamente. Os espíritos de Samuel não. Outro dia de esforço adverso, cortes de papel e olhos avermelhados.
Passados dois minutos sentado à secretária, a secretária levantou-se e derrubou Samuel para o chão.
- “Que pensa que está a fazer? Agora é sempre a mesma coisa não? Olhe que posso acusá-lo de assédio sexual!” – gritou a secretária, enquanto ajustava os óculos e o decote.
Samuel pensou que a brincadeira não funcionou lá muito bem. Uma tentativa de alegrar o ambiente da sua cabeça aborrecida pelo cinzento das paredes. “O decote é só para o chefe” pensou Samuel, levantando-se.
Passados cinco minutos à secretária, os papeis já vinham em camiões, empilhandos em grupos desorganizados em cima dos papeis deixados na sexta-feira. Lapso prepositado, visando uma fuga repentina dos últimos quinze minutos da semana.
Tentando navegar pelas hordas inimigas, os batalhões de papel, Samuel sentiu uma picada leve e penetrante. A sua derme levantou, espirrou e começava a arder num fogo de mato que surgira espontâneamente. Sentindo o ardor do corpo, tanto dentro como fora, provocando alterações hormonais do seu estado humano, olhou maníacamente em todos os lados, num ar de desentendimento, medo e confusão. Receoso do seu destino, procurou infernalmente o bicho infernal que o picara. Desarrumando a sua secretária, assustava os seus colegas. Encontrou o maldito esmagado debaixo de uma pilha de árvores abatidas, transformadas em papeis.
“Maldição! Que raio de coisa é esta?” pensou Samuel furiosamente ao pegar pelas asas o insecto amaldiçoado. O ardor já lhe causava tremores nas mãos, e a visão turvara-se ao encontro da sua sanidade e bem-estar. Agora apenas queria trabalhar, criar, assinar formulários e picar o ponto do seu cartão empresarial. Mas não conseguiu. As imagens avulsadas de pesadelos e receios empilhavam-se na sua mente, e o seu ritmo cardíaco subiu, em esmagadores pulsações que jorravam espasmáticamente pelos seus músculos e orgãos. As picadas infernais de sangue mal distribuído eram demais para a sua força de vontade. Queria era trabalhar. Estar bem, no seu cantinho, com o seu salário ao fim do mês. A sua mente já previa dores e problemas financeiros. “Mas o que é isto Deus!” gritou, correndo aos zigue-zagues pelo escritório, empurrando os colegas, como alguém debaixo de água que está com extrema falta de ar.
Chegou ao telhado, a um terraço aberto decorado com antenas, cabos e parabólicas. Um sanctuário metálico, as raízes que bebem na dependência automatizada do Homem. Samuel pôde constantar que realmente era um dia bonito, a visão era bela e o vento era precioso, batendo-lhe na cara, acalmando-o ligeiramente, se bem que o seu sangue continuava a escorrer pelo interior do seu corpo como ácido. Conseguiu apoiar-se no gradeamento lateral, ouvindo os pombos e o barulho dos carros, que enchiam os pulmões de veneno lento. Samuel acalmou-se. Respirou fundo. Não conseguia concentrar-se no que estava a acontecer, o que estava à sua volta, a mexer-se em distorções alheias e misteriosas. Apenas sentia a cara esfriada pelo vento, embora o resto do seu corpo ardesse num fogo interno, e em espásmos tão fortes que partiam-lhe as costelas. Respirando fundo, Samuel pensou que podia ser que este castigo animalesco fosse só um aviso, que lhe daria o tempo suficiente, uma oportunidade, para se curar. A sua vida iria correr bem. Não desperdiçaria os momentos. Seria o modelo genial da humanidade, em todo o seu esplendor. E enchendo os pulmões do ar que subia da estrada, e com o vento na cara esperançada, rebentou numa nuvem de carne, osso e sangue, pingando o gradeamento e as lajes do terraço, o belo dia manchado de sangue nos vidros do prédio.
Tomás J. A. Pinto

sexta-feira, 11 de maio de 2007

quarta-feira, 9 de maio de 2007

Citação de J. R. R. Tolkien

Esta citação refere-se a um dos tópicos presentes no prefácio para "The Lord of the Rings: The Fellowship of the Ring" de J. R. R. Tolkien. O tópico trata da intenção do autor, aliada à associação alegórica (que se revela infundada) feita entre a Segunda Grande Guerra Mundial, ocorrida na primeira metade do século XX, e a guerra levada a cabo na Terra Média.
Na altura que li a obra prestei uma especial atenção ao tópico. Na escola, ao estudar literatura, nas suas formas de análise e crítica, uma coisa que aprendi à partida foi que nunca podemos saber exactamente qual a intenção do autor (textual ou empírico) ao escrever uma obra. Apenas podemos conjecturar e interpretar segundo determinadas temáticas. Especular, portanto.
Interessava-me então a opinião concreta de um autor sobre a intenção, mais do que a de qualquer crítico ou teorizador, tão esclarecedores quanto sejam.
A intenção pura do autor é uma coisa incompreensivél para o leitor, mas aqui Tolkien resolveu esclarecer algumas perguntas e curiosidades acerca da escrita de "The Lord of the Rings".


"The prime motive was the desire of a tale-teller to try his hand at a really long story that would hold the attention of readers, amuse them, delight them, and at times maybe excite them or deeply move them. As a guide I had only my own feelings for what is appealing or moving, and for many the guide was inevitably often at fault. Some who have read the book , or at any rate have reviewed it, have found it boring, absurd, or contemptible; i have no cause to complain, since i have similar opinions of their works, or of the kinds of writing that they evidently prefer.
[...] The most critical reader of all, myself, now finds many defects, minor and major, but being fortunately under no obligation either to review the book or to write it again, he will pass over these in silence, except one that has been noted by others: the book is to short.
As for any inner meaning or 'message', it has in the intention of the author none. It is neither allegorical nor topical. As the story grew it put down roots (into the past) and threw out unexpected branches; but its main theme was settled from the outset by the inevitable choice of the Ring as the link between it and The Hobbit.
[...] It was written long before the foreshadow of 1939 had yet become a threat of inevitable disaster [...] Its sources are things long before in mind, or in some cases already written, and little or nothing in it was modified by the war that began in 1939 or it's sequels.
[...] Other arrangements could be devised according to the tastes or views of those who like allegory or topical reference. But i cordially dislike allegory in all its manifestations , and always have done so since i grew old and wary enough to detect its presence. I much prefer history, true or feigned, with its varied applicability to the tought and experience of readers. I think that many confuse 'applicability' with 'allegory'; but one resides in the freedom of the reader, and the other in the purposed domination of the author."

in The Lord of the Rings, J. R. R. Tolkien.

quarta-feira, 2 de maio de 2007

Século errado.

“Não serei um incapaz… serei grande e ambidestro, capaz de conceber as mais incríveis eloquências físicas e dimensionalmente excepcionais obras que algumas mãos humanas haverão jamais fazer.”

“Cala-te ignorante, e põe as mãos à obra. És um molengas, como se viu pela perspicácia que demonstras-te ao fugir do assunto e da obra que temos pela frente. Repara que falaste no tempo futuro. Serás… mas não és. És um incapaz. Mãos à obra.”

“Verifique, caro executante de obras perras e difíceis, que estas minhas mãos transbordam de bolhas, e com o risco que corro em levar com um jacto de pus no olho, poderei futuramente reclamar um prémio de injúria.”

“Cala-te!”

“A ideia fica assente portanto.”

Este meu chefe, enfim, é homem para inimagináveis besteiras e insuficiências verbais. Eu estou certo de que uma alma como a minha pertence mais ao século das grandes obras humanas e de divinas descobertas de engenharia. Não arrisco ao dizer que seria um génio, um génio que simplesmente foge ao tempo dos génios mal compreendidos e sofredores. Seria um aristocráta, mas seria um snob consciente do trabalho árduo dos operários, serventes e criadas, e por isso não os chatearia muito, apenas o necessário para fazer com que as coisas fossem executadas. Aqui o meu superior pensa que sou maluco, mas noutro século ele seria o único homem capaz de lavar a minha sanita e pouco mais.

“Não te vejo a trabalhar.”

“Com certeza meu caro chefe executante das simples tarefas…”

“O quê! Chamaste-me simples?”

“Tudo num bom sentido é óbvio. Os complicados são complicados, e as pessoas que retêm um certa simplicidade são as mais felizes, não concorda?”

“Humpf… Talvez tenhas razão. Mãos à obra.”

“Mas como à pouco estava a dizer, antes de ser simplesmente interrompido, estava só a executar mentalmente a organização do trabalho, antes de passar ao trabalho própriamente dito.”

“Cheira-me a esturro, e se não começas a meter óleo na dobradiça na porta do carro do patrão vais ver o que é bom para a tosse. Pode ser que te passe essa eloquência.”

“Mas meu caro, esta minha eloquência define-me. É parte do que sou, e representa o meu brilhante, embora pobre, carácter. Se quer saber, dedico-me a todas as áreas do conhecimento artístico e ciêntifico.”

“Não quero saber. Trabalha!”

“Sabe, neste ramo convém saber de tudo um pouco, e as capacidades de interacção laboral são do maior valor.”

“Aí está, laboral. Onde está a tua actividade laboral?”

“Com o chefe sempre a interromper o meu fluxo cerebral e exercício social, sem mencionar o dispêndio no exerciçio das funções gramaticais, não consigo trabalhar.”

“Sinceramente, já estás a passar das marcas seu idiota. Eu aqui quase a rebentar uma artéria para pôr a mexer esses teus ossos, e tu ainda tentas dar-me a volta? Dás-me cabo dos nervos! É agora, deixaste-me sem paciência. Vais levar…”

Foi no momento em que o meu caro colega executante de matérias do âmbito físico e penoso tentou levar a sua mão fechada numa forma de escultura abstracta à minha cara, de compleição fina e sensível, que o patrão chegou. O patrão era um alto dignatário do governo, com casas em tudo que era país civilizado, como se quer. Possuía servos, criados e empregados. Uma vasta gama de atletas fine-tuned, que mantinha sempre às suas ordens, como era o meu caso e o do meu superior violento. Reparei que o patrão, ao chegar, se estava a dirigir para o que lhe parecia como o ínicio de uma contenda de proporções violentas, que decorreria durante o horário de trabalho. Eramos nós pois claro. O patrão arrastou-se imediatamente para o local do nosso trabalho, trabalho esse agora transfigurado inocentemente numa disputa.

“O que se passa aqui? O que vem a ser isto… esta vergonha na minha casa?”

O meu superior bem tentou explicar, mas o patrão parecia não querer saber. Bastou apenas a observação da mão abstracta a dirigir-se para a minha fina e sensível cara para formular uma opinião, e o patrão raramente muda o cartuxo cerebral, sendo difícil mudar-lhe as ideias.

“Patr.. Patrão, ex… excelentíssimo senhor, deixe-me explicar.”

“Não há nada para explicar. O senhor sabe as regras. Está despedido.”

Entre os berros de revolta do meu caro superior, as expulsões e os juramentos acerca da minha morte, que me esperaria num beco escuro, o patrão prontamente seguiu para outros desígnios, o eterno escravo das agendas. Evitarei becos escuros então.

Ora, é o que afirmo. Se eu tivesse nascido noutro tempo, este tipo de incidentes nunca seriam capazes de ganhar forma, visto que seria um snob respeitador do trabalho servil. Seria mais brando no meu caro colega executante. Apenas uma leva chicoteada pelas costas. Um pequeno correctivo. Enfim, regresso energéticamente ao trabalho.

“Ora vamos lá tratar de ti minha maçadora dobradiça, maravilha de engenharia. Já causaste bastantes incómodos. Ora, mas nem chias…”

Tomás J. A. Pinto

terça-feira, 1 de maio de 2007

Gravidade

Com um cansaço absoluto da mente, demente ao ponto de virar as costas à lucidez do dia matinal, verteu lágrimas de alegria calma ao perceber o sentido das noções utópicas do fundamento fraco de liberdade e convivência. Não podendo realmente sentir alegria, nem calma nem agitada, as lágrimas caíram à terra seca, criando rachas geométricamente estruturadas. Olhando para as cavernosas cavidades da terra, e admirando a sua organização, jogou-se para dentro na hipótese de bater com a cabeça ou com o ombro em alguma coisa afiada. Raios fugitivos e sombras da luz respicaram-lhe os olhos ao longo da descida, e os espelhos que espelhavam as luzes criavam formas intrínsecas e complexas, dignas de choro. Explorava a descida, e sentia-se a subir. Alguma emoção estrangeira ao seu organismo acabava de chocar com os seus músculos tensos, dilatando-os. A calma e o clamor de emoções criaram um fluxo de pânico. Sabia que a aterragem iria doer, por isso, para se abstrair, manteve-se a observar minuciosamente os reflexos da luz, que criavam túneis e grutas escondidas pelas sombras. Parecia-lhe que cada vez que encontrava uma caverna ou um túnel novo encontrava outros de seguida, e passaria para a observação sequencial deles, esqueçendo os outros, e assim consequetivamente. Cansado, quis subir, mas apercebeu-se que ainda estava a descer. Via, clara como o dia, uma lágrima do tamanho dele, a cair ao seu lado e ao seu ritmo. A água reflectia-lhe o rosto, distorcido porém. Reflectia ainda as luzes e os espelhos e as cavernas e os túneis. Estavam a cair em direcção ao fim, mas se era para cima, não sabia. Foi súbitamente agarrado por um estalo barulhento, o som de ossos a partir, e, de novo com os pés na terra e ao ar livre, viu a lágrima a aterrar e a alterar a terra seca.

Tomás J. A. Pinto

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Um machado pela maldade.

O carro passa-me à frente, e depressa, olhando para os lados, atravesso a passadeira. No passeio, um velho carismático e ligeiramente bêbado dirige-me a palavra.

“Desculpa lá aquilo de há pouco. É que distraí-me… Como é que te posso chamar amigo?”

“Tudo menos amigo, ou coisas ofensivas. Sentir-me-ei obrigado a lhe dar uma lição daquelas” digo-lhe. Não estou para estas coisas esta manhã. Já levei o suficiente hoje.

Tinha tido uma noite daquelas, em que o calor nocturno deixa-me nervoso. É um sono inatural. Amorfo. Virei-me para todos os lados, à espera que o barulho da cidade me embala-se. Assim acordaria para mais um dia de suores e maus-cheiros. Odeio o verão na cidade. Agora estou a levar conversa fiada dum estranho. É daquelas pessoas que por mais que se desconfie a conversa conserva um poder atractivo que só anos de experiência e meses de alcoolização permanente podem atribuir. Ás vezes sabemos que é mentira, outras quase acreditamos, mas este velho atraí-me a imaginação como nunca me tinham feito. Há verdade, tragédia e alegria misturadas (como sempre) naquilo que aquela boca babada e lenta me diz.




“Foi com dezassete anos que parti” começo por dizer seriamente ao rapaz. “Num ano em que o circo veio para a cidade. Encantei-me com tudo o que compunha o circo. O trabalho e o modo de vida. Esta cidade odeiava-me. Não sem razão. Em míudo podia ser muito brincalhão, mas sem maldades. Não foi graças às maldades que resolvi partir. Foi graças a elas que consegui partir.”

A memória espeta-me o coração com uma dormência súbita. Continuo normalmente a conversa, mas no fundo sei que a memória é a sensação de culpa que me tem roído ao longo destes anos, daí a necessidade do scotch. “Matei um míudo.” Disparo. O rapaz quase pisca um olho de sobressalto, mole em descrédito.

“Foram as condições que me impuseram. Adorava o circo, estás a ver! E para entrar na vida circense há condições”.

Arroto.

“Com licença. É bom o scotch, e às vezes descuido-me. Mas as minhas sinceras desculpas.”- afianço-lhe verídicamente.

“Estava a dizer…” insiste o rapaz.
“Pois… teria, portanto, de provar o meu valor aos chefes do circo. Contaram-me que estavam desapontados com o seu actual performer de malabares. Acho que tinha sido qualquer coisa do género meter-se com a mulher barbuda. Isso e os constantes atrasos. Teria que matar o míudo, um ano mais velho que eu.”

“Então matou o míudo?”

“Tem que perceber, a vida nesta cidade comia-me vivo. Sabia que nunca chegaria a ser alguém por cá, mas no circo… no circo… saberiam todos o meu nome. O grande Ta…”.

A estrada ensurdece a conversa, e a ambulância que nos passa não deixa o rapaz saber o meu nome. Destino talvez. Eu sei bem como é cruel. Vejo o rapaz a distanciar-se.

“Tem que perceber rapaz...” digo-lhe, meio aos berros. "Esta cidade comer-me-ia vivo". E era verdade o que dizia. “Matei-o com o machado de serviço. Eles trataram do corpo, os chefes. Fui e tornei-me um grande mestre das artes. Mas lá me fui envolver com a maldita mulher das barbas. Acho que todos iamos lá parar. Assim parti, porque sabia que os chefes iriam arranjar uma maneira de se livrarem de mim”. Lembro-me de como no circo era bem alimentado, e estavam sempre pessoas a irem de férias e a serem substituídas.


Esta conversa, que eu disfarçadamente compusera com uma postura incrédula, estava a chegar a um ponto surreal. Eu sabia que era verdade. Instinto talvez. O meu sentido cívico apontou-me apenas uma direcção. O facto de este velho ter morto alguém suscitou em mim uma vontade cruel de pôr o dedo na ferida infectada que era a sua vida, irónica ao ponto de lhe dar mais um pontapé na cara. Chamei a polícia.

Tomás J. A. Pinto

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Resistentes.

A alavanca prende e agita trémulamente, como um bezerro recém-nascido, mandando um projéctil que se assemalhava a um naco de orelha, que alegremente se espalhafata no chão, como um rato oferecido pelo gato ao macho alpha dominante. Aquela máquina infernal causara mais um desaire para o barbeiro.

“Sinceramente, já não se pode cortar o cabelo sem perder uma parte crucial da funcionalidade do corpo humano” - alvejou a vítima, o Dr. Verde, sempre num tom cordial.

“Sinceramente…” - murmurou-se pela barbearia.

“Oiça lá ó Sr. Barbeiro, porque é que persiste nesta ideia de manter a tecnologia ultrapassada, que, potencialmente, é uma armadilha da Morte.” – questiona uma voz amiga, apoiada por outras.

“A morte nem sempre é uma coisa má…” – oferece o barbeiro, mas a sua voz é mergulhada nos murmúrios cíclicos dos ocupantes do estabelecimento.

Realmente, a vontade de mandar a cadeira antiga para o lixo já fora o suficiente para diversas e divertidas ameaças da parte do barbeiro, de chave-de-fendas na mão venenosa. Mas esta cadeira era um símbolo trágico, como o último sobrevivente de uma guerra cruel, morrendo de velhiçe, ignorado. Era precisamente um símbolo pessoal e uma testemunha do passado, conselheiro de alturas em que o mundo fora da barbearia mais se parecia com Urano.

“Não me desfazerei dela.” - avançou o barbeiro, tiranicamente.

“Mas…” – responde o coro.

“Está dito!” – silenciou o barbeiro. “Aquela peça de engenharia sublime ficará aqui. Apesar de causar os desastres ocasionais, os senhores perdoar-me-ão carinhosamente, entenderei.”

Silêncio. Os sussuros das tesouras e das vassouras ocupam novamente as quatro paredes antigas da barbearia, o pedaço de orelha ensanguentado permanecendo no chão. Afinal, não se mete com um homem perito no manuseamento da navalha.

Tomás J. A. Pinto

Explorações mentais representativas de questões triviais, e por isso não triviais.

De noite o cheiro a alcatrão aquecido pelo sol durante o dia oferece-me um indício primaveradoresco. O cheiro a relva cortada e terra molhada brinda-me de memórias infantis.

Já imaginaram, nos vossos pensamentos passageiros e curiosos (que embora práticamente em nada resultam, deixam a marca de uma mente flexível e treinada) como seriam outros tempos, mas através da análise de aspectos básicos e pouco interessantes ao primeiro olhar? Dando um exemplo de um pensamento explorativo pessoal (ocorrido durante uma bebedeira fornecida pelo companheiro dourado), hoje em dia estamos extremamente bem servidos de acessórios para o acto de andar, correr, saltar, viver. Mas recorram à imaginação incisiva e particular de elementos crucias often overlooked, e pintem uma visão de uma centúria romana, marchando quilómetros e mais quilómetros. As sandálias, certamente providenciadas pelo Estado governante, era a única coisa que separava a pele dos pés da terra árida. Parariam para um breve descanso. O soldado comum observaria que os pés estariam cheios ora de pó, ora de terra, de areia, de lama, de humidade, etc. E não pensaria mais nisso. Iriam-se deitar assim. Era um dado adquirido e um facto comum. E não só para os soldados, mas para todos, até à invenção do sapato própriamente dito. Curioso.

Sistemas, raízes, microchips, ramos, ramagens, rios, braços, veias, músculos, gordura, plástico, cera, organogramas, mapas, fronteiras, montanhas, caminhos, horizontal, vertical, agudo, grave, fricção, ondas, suavidade, linhas, frequências, correntes, corda, chuva, folhas, tubagens, sangue, célula, electricidade, vida.

Tentar ver o que acontece, os fenómenos e os elementos, que embora ínvisiveis, estão lá, e actuam sobre nós. Uma coisa fora do lugar, a indevida ocorrência, e tudo altera-se. A ocorrência é devida, portanto?

Superstição. Actua da maneira a que se virar para um lado aconteçe X (superstição). Se virar para o outro lado aconteçe Y (coincidência). A funcionalidade da superstição assenta no facto de, se acreditar nela, faço as coisas de maneira a evitar más ocorrências. Se não acreditar na superstição posso vir, ou não, a ter as más ocorrências. O bom e o mau estão sempre presentes, mas assimiladas de maneiras diferentes. A superstição é fiável então? Tanto como a coincidência.

Meia de leite

Era uma vez um rapaz chamado Chavo. Chavo pertencia àquela elite especial, formada na sobrevivência labiríntica, dos empregados de mesa. A sua vida não a considerava muito apelativa, mas permitia-lhe pequenos luxos que o afastavam do turbilhão social que o puxavam diáriamente por todos os lados, maquinizando-lhe os sentidos. O espaço comum partilhado pela multidão anónima e por Chavo era o Café Silhouette, o seu local de emprego. Era uma superfície recuperada de um velho café popular, sendo mais uma phoenix renascida das cinzas imobiliárias. Era agora in.

Todos os dias, entrando às nove da manhã, deparava-se com as mesmas caras, que, estranhamente, eram sempre diferentes. Rugas, sinais, cabelos loiros, castanhos claros, castanhos escuros, pretos, bigodes, barbas, óculos, chapéus, bengalas, malas. Estas eram as coisas em que Chavo reparava, e pelas quais organizava o seu trabalho. Não era preciso saber mais nada para funcionar e humildemente servir. Ouve por altos as conversas dos clientes, vendo traços comuns de pensamentos colectivos, aproveitando as oportunidades concedidas para auxiliar num debate ou questão trivial, procurando sempre humildemente servir.

- “São Setenta Cêntimos se faz favor.” Indica uma colega a um cliente novo ao estabelecimento.

- “Setenta Cêntimos por um café ?! O que é que me quer fazer, levar à miséria?” retorquiu o cliente, levantando a poeira de um ar snob, apoiado pela esposa, de olhar indignado. “Não se importa de gastar uma pipa de massa em sapatos e renovações anuais da sala de estar, mas por um café levanta logo um escândalo!” pensou a empregada colega de Chavo. Óbviamente que não expressou o seu pensamento de forma selvagem, apenas sorriu e aceitou o dinheiro. Sobrevivência.

Agora Chavo, que tinha parado um momento para observar a reacção da colega, apercebeu-se de uma sombra a crescer ameaçadoramente atrás de si, pondo a mão no seu ombro.

- “Então Chavo-san, como vai o teu dia?” disse a sombra.

Era o Sr. Komoroshi, um gentleman japonês que tinha o prazer de visitar o Café Silhuete numa base quase diária. Era, portanto, parte dos habituais.

Chavo olhou longamente para o Sr. Komoroshi e finalmente respondeu – “Cá se vai não é? Um dia destes já não me vai encontrar cá para me assustar, aparecendo assim dessa maneira.”. Era, claro, uma mentira. Os planos grandiosos do jovem empregado de mesa assentavam-se eternamente em fundações frágeis, de areia e barro. O café era a única coisa certa na sua vida.

A conversa de café com o Sr. Komoroshi era sempre agradável, embuída de cor nipónica e de cultura oriental. Isso fascinava Chavo, uma cultura diferente da sua. A cultura japonesa era como sonho, um sonho acordado no real, de emoção pura e valores fortes, centrados numa auto-disciplina indestructível. Entre pedidos e contas, limpezas e simpatias, Chavo ouvia avidamente o que Komoroshi dizia. Chamava-lhe afectivamente “o Professor”, ao qual este baixava a cabeça em sinal de agradecimento.

Passado as cinco horas, hora de saída, Chavo arrumou as suas coisas e avançou para casa, um pequeno apartamento, mas alegre e sustentável. Meteu as chaves na porta, mas esta abrindo-se repentinamente escancarou-se e lá de dentro veio uma menina pequena a correr, jogando-se para os braços dele. A figura serena e apelativa da mulher encostada à porta, com um sorriso nos lábios, puxou-o para dentro. Estava em casa, e amanhã seria outro dia, o mesmo dia, mas não a mesma noite.

Tomás J. A. Pinto

sábado, 21 de abril de 2007

Opiniões: Mais um exemplo [a cultura americana da merda]

No ínicio desta semana deparei-me, tal como voçês, com mais um exemplo de pura estupidez Norte-Americana. Um massacre como todos gostam de ver, sentadinhos no sofá. Não vou opinar sobre as razões que fizeram o rapaz levar a cabo um massacre daquelas proporções, ou examinar o porquê daquelas mortes desnecessárias e da vítimização colateral. Para isso a minha opinião não vale de nada. Apenas esquematizarei o seguinte:

Uma Nação nova com a mentalidade de um país de Terceiro Mundo infantilizado + Fracas Leis restritivas em relação às Armas + Cultura apologiadora de Violência = Morte, a Culpabilização de Outros que não eles próprios, e uma política externa que reflecte os problemas internos, afectando o resto do mundo.

Mas o que me espanta é o bombardeamento sequencial do “why” e “how”, em que todos se fazem passar por vítimas. Os Norte-Americanos adoram a ideia de serem os good guys e nadam na vanglorização dos seus hérois, mas raramente conseguem ver a realidade do outro lado do espectro. Morrem pessoas todos os dias, nas piores das piores condições. E quando vêem imagens de crianças em África, no Médio Oriente, na Ásia, a empunharem armas, consideram-nos desumanos, inimigos da civilização. Mas se forem eles, basta adicionarem uma música inspiradora à la Springsteen e terá toda a forma de propaganda democrática americana. Assim já não são o inimigo, a ameaça. Esquecem-se é do facto de que na caça muitas vezes é o amigo que mata o amigo. Por engano claro. É sempre por engano.

Tomás J. A. Pinto

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Avisos

Ia Conrad, que os amigos resentidamente chamavam de John, a passear pelos caminhos tortuosos e mal ordenados de um cenário vegetalista, quando ouviu o vento gritar o seu nome. Qual dos dois não tinha a certeza, mas certamente chamava por ele. Ainda sobriamente tentando perceber, apercebeu-se de que devia parecer um louco alcoolizado ao virar-se para todos os lados, na tentativa de ver de onde saia o som que o rodava como um louco. A boca donde saira aquela voz, que passava pelas árvores e arbustros, receberia uma fúria certa. Os pássaros não ajudavam. Cansado daquela confusão, em que os seus pés pareciam ganhar vida própria, decidiu sentar-se em cima de um rochedo da cor de âmbar. Puxou do cachimbo e encheu-o, fingindo não ouvir o vento que chamava por si. No meio do fumo viu que o vento baixara, e a voz desaparecera, mas não podia deixar de sentir que estava atrasado para qualquer coisa. Empurrando o pensamento para o fundo da sua cavidade cranial, explorou a hipótese de entender se aquela voz era sua amiga. Conseguiu isto ao rebuscar o momento em que foi convocado, lembrando-se do nome que lhe fora atribuído pelo vento. Seria Conrad (para os demais)? Ou John (para os amigos)? Não tinha a certeza. A verdade era que não gostava muito do nome dado pelos amigos, em forma de rancor antigo, por ter um nome mais bonito que os deles. Conrad era sinónimo de muito trabalho para pronunciar. Ficaria John. Os amigos claramente não observaram a mudança que certas denominações fazem às pessoas. Conrad vivera até então com um método de observação e de interacção muito distintos. A sua apresentação era relativizada de acordo com o que queria deixar entrar na sua vida. Para os demais era Conrad, e para os amigos John. Assim as coisas ficavam bem divididas, e as confusões evitadas. Mas agora esta última convenção não estava a ser respeitada. A confusão entrara na floresta, e o refúgio espiritual de um homem dividido em dois deixou de o proteger. Conrad, que muitas vezes estudara a forma das árvores (as folhas, o tronco, a altura) calculou que estas já não se pareciam com paredes. As paredes isoladoras do resto. A voz penetrara, e a estrondosidade estremecera-o, desde as pernas arcadas até ao crânio, onde agora estava o pensamento amedrontado do atraso, a cair da prateleira.

Batendo com o cachimbo no rochedo cor de âmbar para o limpar, continuando a sentir os pés confusos, decidiu pôr-se a andar. Logo, o vento levantou-se, e a voz que gritava o seu nome parecia agora mais assustadora. Queria fazer-lhe mal, e certamente o embruxaria para cair numa armadilha pagã, e o seu corpo serviria de exemplo para os jovens. Contariam a história do jovem Conrad John, que não ligando às virtudes cristãs, depressa encontrou o seu fim nas garras demoníacas do paganismo. Continuou a andar, e a voz aproximava-se cada vez mais, ao ritmo que o sol descia pelos vales e as sombras cresciam. Algumas ainda tentaram agarrá-lo, mas eram só umas ramagens de um velho arbustro, com as raízes de fora. Pensou logo em regressar, visto que o seu refúgio mudara hediondamente de cara, olhando-o pelos troncos com olhos malignos, músculos rasgados num sorriso amarelo e castanho, e de voz horrível. Os avisos tinham sido vários, mas Conrad não ligara, e agora a floresta iria-o consumir. Acelerando o passo, tropecava em tudo, e quando mais rápido andava, mas rápido ficava para trás. Os avisos foram muitos, e a voz no vento fora desdenhada. A natureza tem a sua própria natureza, vingativa e inocente.

Acordou sobressaltado com as sombras de ramos velhos projectados na parede. Ainda era de noite, mas não se sentia como se tivesse estado a dormir. Tudo era demasiado fresco, como a terra madrugadora. As memórias do medo. Conrad levantou-se e olhou pela janela para a floresta. O dia e a noite não eram assim tão diferentes, apenas na personalidade, no que se pode ou não fazer. Desdobrando-se, como ele próprio, a natureza tinha as suas sombras, e a sua personalidade. Conrad não sentia medo. Apenas respeito. Sabia que aquilo que se tinha passado fora verdade, e que se fosse para ter medo, estaria morto, a servir de história moral para os mais pequenos.

Tomás J. A. Pinto

terça-feira, 17 de abril de 2007

Bálburdia bestial de preceitos

Vejo as caras que surgem às janelas das vidas alheias. As perguntas, sendo sempre as mesmas, diluíem-se como sangue a escorrer para um fossa. Parte de mim faz parte da terra. Viemos todos do mesmo buraco, da mesma energia comprimida, e somos todos tão diferentes. A razão evolutiva e sociológica da diferença não compreendo ou tento compreender. Passamos todos pela mesma terra, deixando as mesmas pégadas ao rastejarmos espasmásticamente do mesmo deserto. A nossa forma é única e essencial, e não hesitamos ao destruí-la. A minha casa é a casa dos outros, e a minha pele morta é o pó deles. Trago grãos de areia entre os dedos dos pés, que largo, sem saber, a quilómetros de distância. O movimento, tão errático, torna-se monótono, como forças cósmicas. Somos puxados, ou somos nós que puxamos? Paradoxos inúteis em que nos perdemos, e nos encontramos novamente à partida. Definimos limites. Somos poderosos, somos dominantes, criando coisas que servem para dominar. Somos relativos e a incontornável verdade. Somos os nossos próprios dogmas, mas queremos a incompreensão, pois quando todo o mistério desaparecer, e as verdades alcançadas, podemos desaparecer com ele. Somos iguais na nossa diferença, mas as definições que me definem não permitem a inclusão dos diferentes. Somos a dúvida, a semente indevida no campo do nosso poder. Sou a imaginação, imaginada para me definir diferente dos outros.
Trago a ganância e destruo o meu potencial. A minha cura não me interessa. Sou a contradição. Sou aquele sonho de que acordo e esqueço logo. Outras coisas puxam-me, ou sou eu que as puxo?

Tomás J. A. Pinto

Branching out


De vida ou morte

Uma queda sintomológica da cabeça levou-me logo de volta. Que foi aquilo? A minha têmpora esquerda ainda ardia do esquecimento, e a vontade de lembrar ficou por ali. Estava escuro. Muito escuro. E não ouvia nada a não ser o esfregar de carne seca no metal.
Tentei-me mover no escuro e descobrir onde estava, mas algo que me tinha envolvido as mãos fazia um esforço tremendo por me deixar no sítio, como um amante que depois do sexo quer voltar para junto do cheiro familiar, mas que não consegue. A culpa faz coisas insensatas. Mas neste caso, era mesmo impossível. As algemas não me largavam por um instante e a vontade de descobrir onde estava ia levantando-se debaixo da pedra escaldante que era a minha cabeça.
Teria eu feito qualquer coisa para ser catapultado para esta situação? E que situação é esta? As perguntas batem-se de um lado para outro, mas como eu, não se conseguem soltar. As respostas não as encontraria aqui. E a escuridão ainda não se tinha habituado aos meus olhos.
De tempos em tempos conseguia ouvir um sussuro, um sussuro de água a cair a conta-gotas. Dava para calcular rudimentarmente o tamanho do sítio, que não era muito grande, e que também não me confortava. A escuridão revelava o nada, e o esquecimento revelava o pouco. O medo era tal que começei a ouvir um batimento surdo na parede ao lado. É o coração! Entre o pulsar do coração e o cair das gotas, um ritmo surgiu e começei a cantar. Ao menos distraía-me. Podia ser que surgisse alguma resposta, naturalmente, como costuma ser.
Começei por tautear uma canção ignóbil e extremamente irritante, o que deve ter desagradado aos olhos que surgiram, um metro à minha frente. Tinham surgido de relançe, e tomei-os por delírio. Mas a vivacidade deles, o amarelo pálido e duro, exprimindo mil livros num só olhar, deixou-me atemorizado. O que eram aqueles olhos? E como brilhavam eles se não havia luz? O batimento do meu coração já excedia a minha pequena estatura, batendo na parede com as minhas costas, querendo fugir. O único barulho era das gotas, do meu coração, e da salivação permanente, vinda do lado dos olhos.
- “Quem está aí?” perguntei estupidamente, pois aquele olhar não precisava de palavras para saber as intenções. Apenas fitavam, e era o suficiente.
Os berros ensurdecedores não paravam e por momentos pensei ter rebentado com os tímpanos, mas acabei por me controlar e parar de vocalizar a minha histeria desnecessária. Mas gostava tanto daquele ritmo musical e corporal do batimento cardíaco, da dor de cabeça e dos berros, que por pouco não desmaiei. Bem queria. Foi quando notei numa figura ao meu lado, vagamente humana, mas com a forma recortada e mal feita. Deus! Um esqueleto! E com correntes nas mãos! Era este o meu futuro. Era a única resposta que aqueles olhos me dariam.
Acordei suado na cama, com o lençol mergulhado em suor, revelando uma minha falta de higiene em casos extremos. Foi só um sonho, e os barulhos ritmícos da vida corriam ao vento, lá fora. Quanto tempo dormira? Certamente, foi o suficiente para ver o cadáver decomposto da minha mulher ao meu lado, sorrindo naturalmente para mim, como fazia todas as manhãs ao pequeno almoço.
O que fazer? O que fazer? Vão pensar que fui eu! Medo, culpa, planos de fuga, evasão, dissimulação e explicação batiam mais fortes que as perguntas no meu sonho. Foi um sonho, não foi? Claro que foi! Mas não tinha tempo, e a culpa faz coisas insensatas. Mas não fui eu que fiz aquilo! Ou fui? Claro que não!
Saí porta fora, com o olhar pavorado e sereno de um gato nos máximos de um carro. Continuei a andar. Via olhos a olhar para mim de todas as direcções, como se fosse possível ler um grande Culpado de qualquer coisa na minha testa ou numa tabuleta à volta do meu pescoço. Mas aos poucos, eles olhavam, e não olhavam. Eu era indiferente. Muitas vezes via na televisão casos de assassinos e pensava, indiferentemente, “Que sofra na cadeia e morra em dores, o sacana!”. Nunca tinha pensado na complexidade da inocência e da explicação das circunstâncias. Mas por fim, um juíz insolente e um juri inconsciênte revelaria a minha condenação, e voltariam todos jovialmente para junto das famílias, contentes por terem prestado o seu dever cívico. O que é que há de cívico em mandar um homem para a morte? Deve ser natureza humana. Out of sight, out of mind como dizem os ingleses. Mas obviamente, haverá aqueles que têm que sofrer pelo que fizeram, haverá aqueles que querem sofrer pelo que fizeram, e os que nem deviam estar a sofrer pelo que não fizeram. Nesta altura certamente desejaria ter feito aquilo pelo que pagam agora. Saberia melhor, e então a natureza selvagem e dominante, tão bem escondida nas camadas morais, voltaria acima, mostrando o Homem como o animal que é.
Todos estes pensamentos ajudavam-me a me abstrair do meu problema, mas fui obrigado a pedir informações a uns colegas cívicos desconhecidos. Ninguém me respondia. Podia empurrá-los, gritar-lhes aos ouvidos, e nada. O ponto comum era a indiferença. Seria medo? Medo derivado do que tinha feito, ou não feito, estampado no rosto?
Rapido e suavemente, um braço puxou-me para o lado, e sussurando, como gotas de água, praticamente imperceptíveis, disse “Eles não te ouvem.”
- “O quê? Como?” suspirei visceralmente.
- “Não te podem ouvir. Não estás como eles. Jamais voltarás a estar como eles. Estás melhor. Estás morto” respondeu aquela boca estranha e deformada.
Estranhei aquelas palavras, dando a entender com a minha cara enroscada de desconfiança. Mas qualquer coisas batia certo. Não conseguia ver a cara do estranho, mas a voz era a verdade encarnada sobre forma humana. Seria esta a forma da Verdade? De aparência exterior feia, mas de essência pura em factos e emoções claras. Realmente, os homens sempre mascararam a verdade como algo belo, mesmo que os actos em nome das verdades não o fossem. Porque haveria de ser assim? Ou ao contrário? Porque é que tenho que acreditar em tudo o que os homens definem? Agora não interessava.
- “Está bem, estou morto. O que faço?” disse antagónicamente, revelando o meu cépticismo humano. Sou apenas humano. Ah, é verdade, já não sou.
- “Já passaste o teste, agora tens que encontrar o caminho” respondeu.
- “Qual teste?” perguntei.
A essa altura, o estranho deixou transparecer um bocado da sua face, revelando apenas os olhos amarelos. Não dúvidei. Estava morto, e os olhos do meu sonho eram os olhos da Verdade, que vasculhavam a minha alma, avaliando-me. O meu medo no sonho era honesto, e não era uma má pessoa. Estava morto, e tinha estado no limbo. Por alguma razão voltei à minha cama. Será que me tinha enganado no caminho?
E agora? Quem me tinha morto? Porquê? Que faria agora? Estas perguntas assombravam-me como fantasmas da realidade, da vivência. Somos novamente enchidos de ideias pré-concebidas dos homens de que a morte é o refúgio, a salvação, a liberdade dos problemas terrenos, sociais, existênciais, o que fosse! Mas só encontro na morte mais perguntas, e mais problemas. E a minha mulher? Os meus familiares? Porque vivi? Quero respostas, as que não tive hipótese de responder, sequer procurar, enquanto estava vivo. Ao menos agora tenho tempo, e mais nada para fazer. Vou explorar este novo mundo, as novas terras da morte, e encontrar respostas.

Tomás J. A. Pinto

As marcas lacrimais do pó

O velho pendura, balança e parte.
“S-s-s-s-s-s-s-ssshhhh!” sussura o velho para as sombras, desgastado das explicações que teve de dar aos seus alucínios, de maneira a calar-lhes. Entre lágrimas e votos de vontades e arrependimentos, o velho vê nas sombras as figuras distorcidas e alienígenas, que logo a doença trata de ajustar, das pessoas que compuseram a sua vida. Chega-se ao fim e o que resta é o pó e fotografias. A alegria de tempos passados suporta a cabeça velha de tempos em tempos. O velho sabe que já foi um homem. Que já foi um héroi para os filhos, para os netos. Não resta mais do que um corpo decrépito e sem força. Suspirando no meio de lágrimas, a sua vontade é determinante, e mandando calar novamente os anjos nas sombras que o tentam dissuadir, ele beija as fotografias poeirentes, passando a mão por elas, relutante em largar a última coisa terrena em que encontra significado.

Tomás J. A. Pinto

Cause and Effect


Cafeína e multidões

A manhã. 28 de Agosto. Não acredito que ainda há vinte minutos esperava que o homem do café da esquina me desse o café, e já estou a correr pelo meio das explosões e de agressões várias. Não conseguiria aguentar isto se não fosse o café, claramente. Ao ritmo que a cafeína corre do estômago para a circulação sanguínea para o cérebro, as multidões correm para os abrigos. O alarme já soou há dez minutos e ainda sinto os rebentamentos de um morteiro pouco amistoso atrás de mim. Pedaços de uma menina que fugia com a mãe cobriram-me prontamente o cabelo. Dinheiro jogado fora, a despesa do cabeleireiro. Ando, e ando, e esfolo o joelho. Ao mesmo tempo sinto o espernear dos vários corpos estendidos ao sol, como se isto fosse uma praia raios! Os olhos deles estão vivos, apesar deles estarem mortos. Vivos com uma certeza de que tiveram uma vida curta, a implorar por mais um bocado de tempo, que agora já não podem fazer tempo para ele. Quem saberia que esta gloriosa manhã de Agosto fosse estragada pela vontade de um grupo de rapazes a brincar às guerras. O sol, apesar de cedo, já produz gotículas suadas no meu corpo, colando-me a camisa às costas. Raios, e o abrigo? Oiço vozes cortadas que gritam ritmadas com o alarme. Avisam-me do caminho a tomar. Milagres mandados dos céus para me esclarecer. Lá chego ao abrigo, deparando-me com um cenário animador. Uma data de cádaveres estilhaçados por rapazes que sarcásticamente pensaram ser divertido perseguir uma pessoa até ao local seguro, para a poucos metros da salvação retirarem a vida aos esperançosos. Que belos sorrisos devem ter esboçado, a ironia selvática a escorrer da boca, misturada com a baba. E porque não seria eu um daqueles rapazes? Seria muito mais seguro. Mas o abrigo é já aqui, e não me apetece rejeitar os meus princípios ao mais leve dos pensamentos traidores. E fizeram-me entornar o café.

Tomás J. A. Pinto

Curiosidade matou o gajo

Corto um tendão para ver o que acontece. Caio ao chão para ver o que acontece. Violo os direitos humanos mais básicos dos mais fracos para ver o que acontece. Faço de tudo e não faço nada, para ver o que acontece. Às vezes penso que sou intocável. Talvez seja porque faço tudo longe dos olhos que mantêm as estruturas morais intactas. Devia ir reinvidicar os meus direitos à porta da esquadra, cuspindo para cima dos polícias. Posso fazer o que quiser. Ato um nó à volta do ante-braço, e observo a gangrena que se instalada de dia para dia. Encho os pulmões do cheiro que isto faz. Esfolo a pele na minha mão, para ver o que acontece. Rio e rio e rio e rio sem parar. Estalam-me as costelas e moldo bruscamente os rins. Deixo de comer para ver o que acontece. O meu corpo está fraco. Enfraqueço para ver o que acontece. Procuro, para saber o que quero saber. Aconteçe que morro. Não sei nada.

Tomás J. A. Pinto

domingo, 1 de abril de 2007

Texto informativo: "Reefer Madness".

[...] known as Reefer Madness. - Nov. 12, 2006 at 12:21 PM

"To make a long story short, during the first decades of this century, opium was made illegal to kick out the Chinese immigrants who had flooded the work-force. Cocaine was made illegal to repress and control the Black community. And, marijuana was made illegal in order to control Mexicans in the Southeast (and Blacks.) All these laws were based mainly on emotional racism, without much else to back them up -- you can easily tell this by reading the hearings held in state legislatures. Also at this time, the end of Prohibition left us with a large force of unemployed police officers, who looked for work enforcing the new drug laws. Consequently, these same police officers needed to convince the country that their jobs were important. They did so by scaring parents about the dangers of drugs. All this set the stage for a law passed in the Federal legislature which put a prohibitive tax on marijuana. This is what killed the hemp industry in 1937, since it made business in hemp impossible.[...]this period of time became known as Reefer Madness. "

in Cannabis FAQ, EROWID, by Brian S. Julin

Opiniões: formulando fórmulas.

No que diz respeito ao exercício criativo e argumentativo da escrita temos sempre que manter uma mente aberta, coordenadamente funcional com os conhecimentos de argumentação e gramática que nos é acessível. Mas por vezes recorremos a fórmulas pré-concebidas e estruturalmente necessárias para apresentar o assunto e uma moral adjacente (se houver). O que não é mau. As fórmulas permitem uma organização superficial que nos ajuda a encontrar a nossa forma expressiva. Encontramo-nos na nossa escrita, e a nossa escrita reflecte o nosso pensamento.

Dou muito valor às opiniões, mesmo às contrastantes com as minhas, desde que sejam inteligentemente elaboradas e não “só porque sim”. Gosto de uma boa discussão, menos aquelas em que os limites se excedem e corre-se o risco de perder um amigo. A argumentação mantém-nos alerta e perspicazes, valores necessários a uma boa observação.

Um amigo meu uma vez disse “tem que haver pessoas más para sabermos que somos boas pessoas”. A simplicidade destas noções sociais, que estão embuídas de moral, está alíada à sua função de tranquilizar e esclareçer. Avaliamos a nossa posição no mundo, que às vezes é demasiado grande para nós (e às vezes demasiado pequeno) e podemos pensar que é muito fácil julgar, mas é mais dificil aceitar um juízo diferente do nosso. O orgulho é atacado, e mesmo que ninguém goste de o ver ferido, perante uma inegável verdade somos forçados a aceitar. A aceitação leva ao desenvolvimento mental.

A perspectiva é igualmente importante no que toca a assimilar o que nos é transmitido, pois as nossas observações diárias são um resultado de vários factores. A publicidade, a verdade dos media, o governo do país, as novelas, os documentários, os debates, são tudo métodos subsidiários da televisão (que já uma vez denominei de Rectângulo Mágico, que atrai todos os que se deixam levar pelo maravilhoso virtual). A televisão é dominante na sociedade ocidental, e quer queiramos, quer não, acabará sempre por nos influênciar, pela positiva e, cada vez mais, pela negativa. Daí a necessidade da nossa noção de perspectiva se manter pessoal, enquanto o nosso conhecimento (aliado à inteligência perceptual da realidade) luta contra as forças persuasivas e distorçantes do virtual.

As fórmulas estruturais para a escrita criativa ou argumentativa, juntamente com uma perspectiva definida, juízos de valor, uma boa argumentação e estruturação, são a nossa maneira de transmitir o nosso grito. Esse grito pode significar o quer que seja, mas tem que ser perceptível. Temos todas as ferramentas que precisamos, e não temos desculpa por não intervir nesta mentalidade global que é a sociedade ocidental. Mas também é verdade que ao mesmo tempo que nos dão a capacidade de nos exprimir, são cada vez mais os que se vão exprimir. E isso faz do nosso grito um sussurro.

Tomás J. A. Pinto