quinta-feira, 26 de abril de 2007

Um machado pela maldade.

O carro passa-me à frente, e depressa, olhando para os lados, atravesso a passadeira. No passeio, um velho carismático e ligeiramente bêbado dirige-me a palavra.

“Desculpa lá aquilo de há pouco. É que distraí-me… Como é que te posso chamar amigo?”

“Tudo menos amigo, ou coisas ofensivas. Sentir-me-ei obrigado a lhe dar uma lição daquelas” digo-lhe. Não estou para estas coisas esta manhã. Já levei o suficiente hoje.

Tinha tido uma noite daquelas, em que o calor nocturno deixa-me nervoso. É um sono inatural. Amorfo. Virei-me para todos os lados, à espera que o barulho da cidade me embala-se. Assim acordaria para mais um dia de suores e maus-cheiros. Odeio o verão na cidade. Agora estou a levar conversa fiada dum estranho. É daquelas pessoas que por mais que se desconfie a conversa conserva um poder atractivo que só anos de experiência e meses de alcoolização permanente podem atribuir. Ás vezes sabemos que é mentira, outras quase acreditamos, mas este velho atraí-me a imaginação como nunca me tinham feito. Há verdade, tragédia e alegria misturadas (como sempre) naquilo que aquela boca babada e lenta me diz.




“Foi com dezassete anos que parti” começo por dizer seriamente ao rapaz. “Num ano em que o circo veio para a cidade. Encantei-me com tudo o que compunha o circo. O trabalho e o modo de vida. Esta cidade odeiava-me. Não sem razão. Em míudo podia ser muito brincalhão, mas sem maldades. Não foi graças às maldades que resolvi partir. Foi graças a elas que consegui partir.”

A memória espeta-me o coração com uma dormência súbita. Continuo normalmente a conversa, mas no fundo sei que a memória é a sensação de culpa que me tem roído ao longo destes anos, daí a necessidade do scotch. “Matei um míudo.” Disparo. O rapaz quase pisca um olho de sobressalto, mole em descrédito.

“Foram as condições que me impuseram. Adorava o circo, estás a ver! E para entrar na vida circense há condições”.

Arroto.

“Com licença. É bom o scotch, e às vezes descuido-me. Mas as minhas sinceras desculpas.”- afianço-lhe verídicamente.

“Estava a dizer…” insiste o rapaz.
“Pois… teria, portanto, de provar o meu valor aos chefes do circo. Contaram-me que estavam desapontados com o seu actual performer de malabares. Acho que tinha sido qualquer coisa do género meter-se com a mulher barbuda. Isso e os constantes atrasos. Teria que matar o míudo, um ano mais velho que eu.”

“Então matou o míudo?”

“Tem que perceber, a vida nesta cidade comia-me vivo. Sabia que nunca chegaria a ser alguém por cá, mas no circo… no circo… saberiam todos o meu nome. O grande Ta…”.

A estrada ensurdece a conversa, e a ambulância que nos passa não deixa o rapaz saber o meu nome. Destino talvez. Eu sei bem como é cruel. Vejo o rapaz a distanciar-se.

“Tem que perceber rapaz...” digo-lhe, meio aos berros. "Esta cidade comer-me-ia vivo". E era verdade o que dizia. “Matei-o com o machado de serviço. Eles trataram do corpo, os chefes. Fui e tornei-me um grande mestre das artes. Mas lá me fui envolver com a maldita mulher das barbas. Acho que todos iamos lá parar. Assim parti, porque sabia que os chefes iriam arranjar uma maneira de se livrarem de mim”. Lembro-me de como no circo era bem alimentado, e estavam sempre pessoas a irem de férias e a serem substituídas.


Esta conversa, que eu disfarçadamente compusera com uma postura incrédula, estava a chegar a um ponto surreal. Eu sabia que era verdade. Instinto talvez. O meu sentido cívico apontou-me apenas uma direcção. O facto de este velho ter morto alguém suscitou em mim uma vontade cruel de pôr o dedo na ferida infectada que era a sua vida, irónica ao ponto de lhe dar mais um pontapé na cara. Chamei a polícia.

Tomás J. A. Pinto

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Resistentes.

A alavanca prende e agita trémulamente, como um bezerro recém-nascido, mandando um projéctil que se assemalhava a um naco de orelha, que alegremente se espalhafata no chão, como um rato oferecido pelo gato ao macho alpha dominante. Aquela máquina infernal causara mais um desaire para o barbeiro.

“Sinceramente, já não se pode cortar o cabelo sem perder uma parte crucial da funcionalidade do corpo humano” - alvejou a vítima, o Dr. Verde, sempre num tom cordial.

“Sinceramente…” - murmurou-se pela barbearia.

“Oiça lá ó Sr. Barbeiro, porque é que persiste nesta ideia de manter a tecnologia ultrapassada, que, potencialmente, é uma armadilha da Morte.” – questiona uma voz amiga, apoiada por outras.

“A morte nem sempre é uma coisa má…” – oferece o barbeiro, mas a sua voz é mergulhada nos murmúrios cíclicos dos ocupantes do estabelecimento.

Realmente, a vontade de mandar a cadeira antiga para o lixo já fora o suficiente para diversas e divertidas ameaças da parte do barbeiro, de chave-de-fendas na mão venenosa. Mas esta cadeira era um símbolo trágico, como o último sobrevivente de uma guerra cruel, morrendo de velhiçe, ignorado. Era precisamente um símbolo pessoal e uma testemunha do passado, conselheiro de alturas em que o mundo fora da barbearia mais se parecia com Urano.

“Não me desfazerei dela.” - avançou o barbeiro, tiranicamente.

“Mas…” – responde o coro.

“Está dito!” – silenciou o barbeiro. “Aquela peça de engenharia sublime ficará aqui. Apesar de causar os desastres ocasionais, os senhores perdoar-me-ão carinhosamente, entenderei.”

Silêncio. Os sussuros das tesouras e das vassouras ocupam novamente as quatro paredes antigas da barbearia, o pedaço de orelha ensanguentado permanecendo no chão. Afinal, não se mete com um homem perito no manuseamento da navalha.

Tomás J. A. Pinto

Explorações mentais representativas de questões triviais, e por isso não triviais.

De noite o cheiro a alcatrão aquecido pelo sol durante o dia oferece-me um indício primaveradoresco. O cheiro a relva cortada e terra molhada brinda-me de memórias infantis.

Já imaginaram, nos vossos pensamentos passageiros e curiosos (que embora práticamente em nada resultam, deixam a marca de uma mente flexível e treinada) como seriam outros tempos, mas através da análise de aspectos básicos e pouco interessantes ao primeiro olhar? Dando um exemplo de um pensamento explorativo pessoal (ocorrido durante uma bebedeira fornecida pelo companheiro dourado), hoje em dia estamos extremamente bem servidos de acessórios para o acto de andar, correr, saltar, viver. Mas recorram à imaginação incisiva e particular de elementos crucias often overlooked, e pintem uma visão de uma centúria romana, marchando quilómetros e mais quilómetros. As sandálias, certamente providenciadas pelo Estado governante, era a única coisa que separava a pele dos pés da terra árida. Parariam para um breve descanso. O soldado comum observaria que os pés estariam cheios ora de pó, ora de terra, de areia, de lama, de humidade, etc. E não pensaria mais nisso. Iriam-se deitar assim. Era um dado adquirido e um facto comum. E não só para os soldados, mas para todos, até à invenção do sapato própriamente dito. Curioso.

Sistemas, raízes, microchips, ramos, ramagens, rios, braços, veias, músculos, gordura, plástico, cera, organogramas, mapas, fronteiras, montanhas, caminhos, horizontal, vertical, agudo, grave, fricção, ondas, suavidade, linhas, frequências, correntes, corda, chuva, folhas, tubagens, sangue, célula, electricidade, vida.

Tentar ver o que acontece, os fenómenos e os elementos, que embora ínvisiveis, estão lá, e actuam sobre nós. Uma coisa fora do lugar, a indevida ocorrência, e tudo altera-se. A ocorrência é devida, portanto?

Superstição. Actua da maneira a que se virar para um lado aconteçe X (superstição). Se virar para o outro lado aconteçe Y (coincidência). A funcionalidade da superstição assenta no facto de, se acreditar nela, faço as coisas de maneira a evitar más ocorrências. Se não acreditar na superstição posso vir, ou não, a ter as más ocorrências. O bom e o mau estão sempre presentes, mas assimiladas de maneiras diferentes. A superstição é fiável então? Tanto como a coincidência.

Meia de leite

Era uma vez um rapaz chamado Chavo. Chavo pertencia àquela elite especial, formada na sobrevivência labiríntica, dos empregados de mesa. A sua vida não a considerava muito apelativa, mas permitia-lhe pequenos luxos que o afastavam do turbilhão social que o puxavam diáriamente por todos os lados, maquinizando-lhe os sentidos. O espaço comum partilhado pela multidão anónima e por Chavo era o Café Silhouette, o seu local de emprego. Era uma superfície recuperada de um velho café popular, sendo mais uma phoenix renascida das cinzas imobiliárias. Era agora in.

Todos os dias, entrando às nove da manhã, deparava-se com as mesmas caras, que, estranhamente, eram sempre diferentes. Rugas, sinais, cabelos loiros, castanhos claros, castanhos escuros, pretos, bigodes, barbas, óculos, chapéus, bengalas, malas. Estas eram as coisas em que Chavo reparava, e pelas quais organizava o seu trabalho. Não era preciso saber mais nada para funcionar e humildemente servir. Ouve por altos as conversas dos clientes, vendo traços comuns de pensamentos colectivos, aproveitando as oportunidades concedidas para auxiliar num debate ou questão trivial, procurando sempre humildemente servir.

- “São Setenta Cêntimos se faz favor.” Indica uma colega a um cliente novo ao estabelecimento.

- “Setenta Cêntimos por um café ?! O que é que me quer fazer, levar à miséria?” retorquiu o cliente, levantando a poeira de um ar snob, apoiado pela esposa, de olhar indignado. “Não se importa de gastar uma pipa de massa em sapatos e renovações anuais da sala de estar, mas por um café levanta logo um escândalo!” pensou a empregada colega de Chavo. Óbviamente que não expressou o seu pensamento de forma selvagem, apenas sorriu e aceitou o dinheiro. Sobrevivência.

Agora Chavo, que tinha parado um momento para observar a reacção da colega, apercebeu-se de uma sombra a crescer ameaçadoramente atrás de si, pondo a mão no seu ombro.

- “Então Chavo-san, como vai o teu dia?” disse a sombra.

Era o Sr. Komoroshi, um gentleman japonês que tinha o prazer de visitar o Café Silhuete numa base quase diária. Era, portanto, parte dos habituais.

Chavo olhou longamente para o Sr. Komoroshi e finalmente respondeu – “Cá se vai não é? Um dia destes já não me vai encontrar cá para me assustar, aparecendo assim dessa maneira.”. Era, claro, uma mentira. Os planos grandiosos do jovem empregado de mesa assentavam-se eternamente em fundações frágeis, de areia e barro. O café era a única coisa certa na sua vida.

A conversa de café com o Sr. Komoroshi era sempre agradável, embuída de cor nipónica e de cultura oriental. Isso fascinava Chavo, uma cultura diferente da sua. A cultura japonesa era como sonho, um sonho acordado no real, de emoção pura e valores fortes, centrados numa auto-disciplina indestructível. Entre pedidos e contas, limpezas e simpatias, Chavo ouvia avidamente o que Komoroshi dizia. Chamava-lhe afectivamente “o Professor”, ao qual este baixava a cabeça em sinal de agradecimento.

Passado as cinco horas, hora de saída, Chavo arrumou as suas coisas e avançou para casa, um pequeno apartamento, mas alegre e sustentável. Meteu as chaves na porta, mas esta abrindo-se repentinamente escancarou-se e lá de dentro veio uma menina pequena a correr, jogando-se para os braços dele. A figura serena e apelativa da mulher encostada à porta, com um sorriso nos lábios, puxou-o para dentro. Estava em casa, e amanhã seria outro dia, o mesmo dia, mas não a mesma noite.

Tomás J. A. Pinto

sábado, 21 de abril de 2007

Opiniões: Mais um exemplo [a cultura americana da merda]

No ínicio desta semana deparei-me, tal como voçês, com mais um exemplo de pura estupidez Norte-Americana. Um massacre como todos gostam de ver, sentadinhos no sofá. Não vou opinar sobre as razões que fizeram o rapaz levar a cabo um massacre daquelas proporções, ou examinar o porquê daquelas mortes desnecessárias e da vítimização colateral. Para isso a minha opinião não vale de nada. Apenas esquematizarei o seguinte:

Uma Nação nova com a mentalidade de um país de Terceiro Mundo infantilizado + Fracas Leis restritivas em relação às Armas + Cultura apologiadora de Violência = Morte, a Culpabilização de Outros que não eles próprios, e uma política externa que reflecte os problemas internos, afectando o resto do mundo.

Mas o que me espanta é o bombardeamento sequencial do “why” e “how”, em que todos se fazem passar por vítimas. Os Norte-Americanos adoram a ideia de serem os good guys e nadam na vanglorização dos seus hérois, mas raramente conseguem ver a realidade do outro lado do espectro. Morrem pessoas todos os dias, nas piores das piores condições. E quando vêem imagens de crianças em África, no Médio Oriente, na Ásia, a empunharem armas, consideram-nos desumanos, inimigos da civilização. Mas se forem eles, basta adicionarem uma música inspiradora à la Springsteen e terá toda a forma de propaganda democrática americana. Assim já não são o inimigo, a ameaça. Esquecem-se é do facto de que na caça muitas vezes é o amigo que mata o amigo. Por engano claro. É sempre por engano.

Tomás J. A. Pinto

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Avisos

Ia Conrad, que os amigos resentidamente chamavam de John, a passear pelos caminhos tortuosos e mal ordenados de um cenário vegetalista, quando ouviu o vento gritar o seu nome. Qual dos dois não tinha a certeza, mas certamente chamava por ele. Ainda sobriamente tentando perceber, apercebeu-se de que devia parecer um louco alcoolizado ao virar-se para todos os lados, na tentativa de ver de onde saia o som que o rodava como um louco. A boca donde saira aquela voz, que passava pelas árvores e arbustros, receberia uma fúria certa. Os pássaros não ajudavam. Cansado daquela confusão, em que os seus pés pareciam ganhar vida própria, decidiu sentar-se em cima de um rochedo da cor de âmbar. Puxou do cachimbo e encheu-o, fingindo não ouvir o vento que chamava por si. No meio do fumo viu que o vento baixara, e a voz desaparecera, mas não podia deixar de sentir que estava atrasado para qualquer coisa. Empurrando o pensamento para o fundo da sua cavidade cranial, explorou a hipótese de entender se aquela voz era sua amiga. Conseguiu isto ao rebuscar o momento em que foi convocado, lembrando-se do nome que lhe fora atribuído pelo vento. Seria Conrad (para os demais)? Ou John (para os amigos)? Não tinha a certeza. A verdade era que não gostava muito do nome dado pelos amigos, em forma de rancor antigo, por ter um nome mais bonito que os deles. Conrad era sinónimo de muito trabalho para pronunciar. Ficaria John. Os amigos claramente não observaram a mudança que certas denominações fazem às pessoas. Conrad vivera até então com um método de observação e de interacção muito distintos. A sua apresentação era relativizada de acordo com o que queria deixar entrar na sua vida. Para os demais era Conrad, e para os amigos John. Assim as coisas ficavam bem divididas, e as confusões evitadas. Mas agora esta última convenção não estava a ser respeitada. A confusão entrara na floresta, e o refúgio espiritual de um homem dividido em dois deixou de o proteger. Conrad, que muitas vezes estudara a forma das árvores (as folhas, o tronco, a altura) calculou que estas já não se pareciam com paredes. As paredes isoladoras do resto. A voz penetrara, e a estrondosidade estremecera-o, desde as pernas arcadas até ao crânio, onde agora estava o pensamento amedrontado do atraso, a cair da prateleira.

Batendo com o cachimbo no rochedo cor de âmbar para o limpar, continuando a sentir os pés confusos, decidiu pôr-se a andar. Logo, o vento levantou-se, e a voz que gritava o seu nome parecia agora mais assustadora. Queria fazer-lhe mal, e certamente o embruxaria para cair numa armadilha pagã, e o seu corpo serviria de exemplo para os jovens. Contariam a história do jovem Conrad John, que não ligando às virtudes cristãs, depressa encontrou o seu fim nas garras demoníacas do paganismo. Continuou a andar, e a voz aproximava-se cada vez mais, ao ritmo que o sol descia pelos vales e as sombras cresciam. Algumas ainda tentaram agarrá-lo, mas eram só umas ramagens de um velho arbustro, com as raízes de fora. Pensou logo em regressar, visto que o seu refúgio mudara hediondamente de cara, olhando-o pelos troncos com olhos malignos, músculos rasgados num sorriso amarelo e castanho, e de voz horrível. Os avisos tinham sido vários, mas Conrad não ligara, e agora a floresta iria-o consumir. Acelerando o passo, tropecava em tudo, e quando mais rápido andava, mas rápido ficava para trás. Os avisos foram muitos, e a voz no vento fora desdenhada. A natureza tem a sua própria natureza, vingativa e inocente.

Acordou sobressaltado com as sombras de ramos velhos projectados na parede. Ainda era de noite, mas não se sentia como se tivesse estado a dormir. Tudo era demasiado fresco, como a terra madrugadora. As memórias do medo. Conrad levantou-se e olhou pela janela para a floresta. O dia e a noite não eram assim tão diferentes, apenas na personalidade, no que se pode ou não fazer. Desdobrando-se, como ele próprio, a natureza tinha as suas sombras, e a sua personalidade. Conrad não sentia medo. Apenas respeito. Sabia que aquilo que se tinha passado fora verdade, e que se fosse para ter medo, estaria morto, a servir de história moral para os mais pequenos.

Tomás J. A. Pinto

terça-feira, 17 de abril de 2007

Bálburdia bestial de preceitos

Vejo as caras que surgem às janelas das vidas alheias. As perguntas, sendo sempre as mesmas, diluíem-se como sangue a escorrer para um fossa. Parte de mim faz parte da terra. Viemos todos do mesmo buraco, da mesma energia comprimida, e somos todos tão diferentes. A razão evolutiva e sociológica da diferença não compreendo ou tento compreender. Passamos todos pela mesma terra, deixando as mesmas pégadas ao rastejarmos espasmásticamente do mesmo deserto. A nossa forma é única e essencial, e não hesitamos ao destruí-la. A minha casa é a casa dos outros, e a minha pele morta é o pó deles. Trago grãos de areia entre os dedos dos pés, que largo, sem saber, a quilómetros de distância. O movimento, tão errático, torna-se monótono, como forças cósmicas. Somos puxados, ou somos nós que puxamos? Paradoxos inúteis em que nos perdemos, e nos encontramos novamente à partida. Definimos limites. Somos poderosos, somos dominantes, criando coisas que servem para dominar. Somos relativos e a incontornável verdade. Somos os nossos próprios dogmas, mas queremos a incompreensão, pois quando todo o mistério desaparecer, e as verdades alcançadas, podemos desaparecer com ele. Somos iguais na nossa diferença, mas as definições que me definem não permitem a inclusão dos diferentes. Somos a dúvida, a semente indevida no campo do nosso poder. Sou a imaginação, imaginada para me definir diferente dos outros.
Trago a ganância e destruo o meu potencial. A minha cura não me interessa. Sou a contradição. Sou aquele sonho de que acordo e esqueço logo. Outras coisas puxam-me, ou sou eu que as puxo?

Tomás J. A. Pinto

Branching out


De vida ou morte

Uma queda sintomológica da cabeça levou-me logo de volta. Que foi aquilo? A minha têmpora esquerda ainda ardia do esquecimento, e a vontade de lembrar ficou por ali. Estava escuro. Muito escuro. E não ouvia nada a não ser o esfregar de carne seca no metal.
Tentei-me mover no escuro e descobrir onde estava, mas algo que me tinha envolvido as mãos fazia um esforço tremendo por me deixar no sítio, como um amante que depois do sexo quer voltar para junto do cheiro familiar, mas que não consegue. A culpa faz coisas insensatas. Mas neste caso, era mesmo impossível. As algemas não me largavam por um instante e a vontade de descobrir onde estava ia levantando-se debaixo da pedra escaldante que era a minha cabeça.
Teria eu feito qualquer coisa para ser catapultado para esta situação? E que situação é esta? As perguntas batem-se de um lado para outro, mas como eu, não se conseguem soltar. As respostas não as encontraria aqui. E a escuridão ainda não se tinha habituado aos meus olhos.
De tempos em tempos conseguia ouvir um sussuro, um sussuro de água a cair a conta-gotas. Dava para calcular rudimentarmente o tamanho do sítio, que não era muito grande, e que também não me confortava. A escuridão revelava o nada, e o esquecimento revelava o pouco. O medo era tal que começei a ouvir um batimento surdo na parede ao lado. É o coração! Entre o pulsar do coração e o cair das gotas, um ritmo surgiu e começei a cantar. Ao menos distraía-me. Podia ser que surgisse alguma resposta, naturalmente, como costuma ser.
Começei por tautear uma canção ignóbil e extremamente irritante, o que deve ter desagradado aos olhos que surgiram, um metro à minha frente. Tinham surgido de relançe, e tomei-os por delírio. Mas a vivacidade deles, o amarelo pálido e duro, exprimindo mil livros num só olhar, deixou-me atemorizado. O que eram aqueles olhos? E como brilhavam eles se não havia luz? O batimento do meu coração já excedia a minha pequena estatura, batendo na parede com as minhas costas, querendo fugir. O único barulho era das gotas, do meu coração, e da salivação permanente, vinda do lado dos olhos.
- “Quem está aí?” perguntei estupidamente, pois aquele olhar não precisava de palavras para saber as intenções. Apenas fitavam, e era o suficiente.
Os berros ensurdecedores não paravam e por momentos pensei ter rebentado com os tímpanos, mas acabei por me controlar e parar de vocalizar a minha histeria desnecessária. Mas gostava tanto daquele ritmo musical e corporal do batimento cardíaco, da dor de cabeça e dos berros, que por pouco não desmaiei. Bem queria. Foi quando notei numa figura ao meu lado, vagamente humana, mas com a forma recortada e mal feita. Deus! Um esqueleto! E com correntes nas mãos! Era este o meu futuro. Era a única resposta que aqueles olhos me dariam.
Acordei suado na cama, com o lençol mergulhado em suor, revelando uma minha falta de higiene em casos extremos. Foi só um sonho, e os barulhos ritmícos da vida corriam ao vento, lá fora. Quanto tempo dormira? Certamente, foi o suficiente para ver o cadáver decomposto da minha mulher ao meu lado, sorrindo naturalmente para mim, como fazia todas as manhãs ao pequeno almoço.
O que fazer? O que fazer? Vão pensar que fui eu! Medo, culpa, planos de fuga, evasão, dissimulação e explicação batiam mais fortes que as perguntas no meu sonho. Foi um sonho, não foi? Claro que foi! Mas não tinha tempo, e a culpa faz coisas insensatas. Mas não fui eu que fiz aquilo! Ou fui? Claro que não!
Saí porta fora, com o olhar pavorado e sereno de um gato nos máximos de um carro. Continuei a andar. Via olhos a olhar para mim de todas as direcções, como se fosse possível ler um grande Culpado de qualquer coisa na minha testa ou numa tabuleta à volta do meu pescoço. Mas aos poucos, eles olhavam, e não olhavam. Eu era indiferente. Muitas vezes via na televisão casos de assassinos e pensava, indiferentemente, “Que sofra na cadeia e morra em dores, o sacana!”. Nunca tinha pensado na complexidade da inocência e da explicação das circunstâncias. Mas por fim, um juíz insolente e um juri inconsciênte revelaria a minha condenação, e voltariam todos jovialmente para junto das famílias, contentes por terem prestado o seu dever cívico. O que é que há de cívico em mandar um homem para a morte? Deve ser natureza humana. Out of sight, out of mind como dizem os ingleses. Mas obviamente, haverá aqueles que têm que sofrer pelo que fizeram, haverá aqueles que querem sofrer pelo que fizeram, e os que nem deviam estar a sofrer pelo que não fizeram. Nesta altura certamente desejaria ter feito aquilo pelo que pagam agora. Saberia melhor, e então a natureza selvagem e dominante, tão bem escondida nas camadas morais, voltaria acima, mostrando o Homem como o animal que é.
Todos estes pensamentos ajudavam-me a me abstrair do meu problema, mas fui obrigado a pedir informações a uns colegas cívicos desconhecidos. Ninguém me respondia. Podia empurrá-los, gritar-lhes aos ouvidos, e nada. O ponto comum era a indiferença. Seria medo? Medo derivado do que tinha feito, ou não feito, estampado no rosto?
Rapido e suavemente, um braço puxou-me para o lado, e sussurando, como gotas de água, praticamente imperceptíveis, disse “Eles não te ouvem.”
- “O quê? Como?” suspirei visceralmente.
- “Não te podem ouvir. Não estás como eles. Jamais voltarás a estar como eles. Estás melhor. Estás morto” respondeu aquela boca estranha e deformada.
Estranhei aquelas palavras, dando a entender com a minha cara enroscada de desconfiança. Mas qualquer coisas batia certo. Não conseguia ver a cara do estranho, mas a voz era a verdade encarnada sobre forma humana. Seria esta a forma da Verdade? De aparência exterior feia, mas de essência pura em factos e emoções claras. Realmente, os homens sempre mascararam a verdade como algo belo, mesmo que os actos em nome das verdades não o fossem. Porque haveria de ser assim? Ou ao contrário? Porque é que tenho que acreditar em tudo o que os homens definem? Agora não interessava.
- “Está bem, estou morto. O que faço?” disse antagónicamente, revelando o meu cépticismo humano. Sou apenas humano. Ah, é verdade, já não sou.
- “Já passaste o teste, agora tens que encontrar o caminho” respondeu.
- “Qual teste?” perguntei.
A essa altura, o estranho deixou transparecer um bocado da sua face, revelando apenas os olhos amarelos. Não dúvidei. Estava morto, e os olhos do meu sonho eram os olhos da Verdade, que vasculhavam a minha alma, avaliando-me. O meu medo no sonho era honesto, e não era uma má pessoa. Estava morto, e tinha estado no limbo. Por alguma razão voltei à minha cama. Será que me tinha enganado no caminho?
E agora? Quem me tinha morto? Porquê? Que faria agora? Estas perguntas assombravam-me como fantasmas da realidade, da vivência. Somos novamente enchidos de ideias pré-concebidas dos homens de que a morte é o refúgio, a salvação, a liberdade dos problemas terrenos, sociais, existênciais, o que fosse! Mas só encontro na morte mais perguntas, e mais problemas. E a minha mulher? Os meus familiares? Porque vivi? Quero respostas, as que não tive hipótese de responder, sequer procurar, enquanto estava vivo. Ao menos agora tenho tempo, e mais nada para fazer. Vou explorar este novo mundo, as novas terras da morte, e encontrar respostas.

Tomás J. A. Pinto

As marcas lacrimais do pó

O velho pendura, balança e parte.
“S-s-s-s-s-s-s-ssshhhh!” sussura o velho para as sombras, desgastado das explicações que teve de dar aos seus alucínios, de maneira a calar-lhes. Entre lágrimas e votos de vontades e arrependimentos, o velho vê nas sombras as figuras distorcidas e alienígenas, que logo a doença trata de ajustar, das pessoas que compuseram a sua vida. Chega-se ao fim e o que resta é o pó e fotografias. A alegria de tempos passados suporta a cabeça velha de tempos em tempos. O velho sabe que já foi um homem. Que já foi um héroi para os filhos, para os netos. Não resta mais do que um corpo decrépito e sem força. Suspirando no meio de lágrimas, a sua vontade é determinante, e mandando calar novamente os anjos nas sombras que o tentam dissuadir, ele beija as fotografias poeirentes, passando a mão por elas, relutante em largar a última coisa terrena em que encontra significado.

Tomás J. A. Pinto

Cause and Effect


Cafeína e multidões

A manhã. 28 de Agosto. Não acredito que ainda há vinte minutos esperava que o homem do café da esquina me desse o café, e já estou a correr pelo meio das explosões e de agressões várias. Não conseguiria aguentar isto se não fosse o café, claramente. Ao ritmo que a cafeína corre do estômago para a circulação sanguínea para o cérebro, as multidões correm para os abrigos. O alarme já soou há dez minutos e ainda sinto os rebentamentos de um morteiro pouco amistoso atrás de mim. Pedaços de uma menina que fugia com a mãe cobriram-me prontamente o cabelo. Dinheiro jogado fora, a despesa do cabeleireiro. Ando, e ando, e esfolo o joelho. Ao mesmo tempo sinto o espernear dos vários corpos estendidos ao sol, como se isto fosse uma praia raios! Os olhos deles estão vivos, apesar deles estarem mortos. Vivos com uma certeza de que tiveram uma vida curta, a implorar por mais um bocado de tempo, que agora já não podem fazer tempo para ele. Quem saberia que esta gloriosa manhã de Agosto fosse estragada pela vontade de um grupo de rapazes a brincar às guerras. O sol, apesar de cedo, já produz gotículas suadas no meu corpo, colando-me a camisa às costas. Raios, e o abrigo? Oiço vozes cortadas que gritam ritmadas com o alarme. Avisam-me do caminho a tomar. Milagres mandados dos céus para me esclarecer. Lá chego ao abrigo, deparando-me com um cenário animador. Uma data de cádaveres estilhaçados por rapazes que sarcásticamente pensaram ser divertido perseguir uma pessoa até ao local seguro, para a poucos metros da salvação retirarem a vida aos esperançosos. Que belos sorrisos devem ter esboçado, a ironia selvática a escorrer da boca, misturada com a baba. E porque não seria eu um daqueles rapazes? Seria muito mais seguro. Mas o abrigo é já aqui, e não me apetece rejeitar os meus princípios ao mais leve dos pensamentos traidores. E fizeram-me entornar o café.

Tomás J. A. Pinto

Curiosidade matou o gajo

Corto um tendão para ver o que acontece. Caio ao chão para ver o que acontece. Violo os direitos humanos mais básicos dos mais fracos para ver o que acontece. Faço de tudo e não faço nada, para ver o que acontece. Às vezes penso que sou intocável. Talvez seja porque faço tudo longe dos olhos que mantêm as estruturas morais intactas. Devia ir reinvidicar os meus direitos à porta da esquadra, cuspindo para cima dos polícias. Posso fazer o que quiser. Ato um nó à volta do ante-braço, e observo a gangrena que se instalada de dia para dia. Encho os pulmões do cheiro que isto faz. Esfolo a pele na minha mão, para ver o que acontece. Rio e rio e rio e rio sem parar. Estalam-me as costelas e moldo bruscamente os rins. Deixo de comer para ver o que acontece. O meu corpo está fraco. Enfraqueço para ver o que acontece. Procuro, para saber o que quero saber. Aconteçe que morro. Não sei nada.

Tomás J. A. Pinto

domingo, 1 de abril de 2007

Texto informativo: "Reefer Madness".

[...] known as Reefer Madness. - Nov. 12, 2006 at 12:21 PM

"To make a long story short, during the first decades of this century, opium was made illegal to kick out the Chinese immigrants who had flooded the work-force. Cocaine was made illegal to repress and control the Black community. And, marijuana was made illegal in order to control Mexicans in the Southeast (and Blacks.) All these laws were based mainly on emotional racism, without much else to back them up -- you can easily tell this by reading the hearings held in state legislatures. Also at this time, the end of Prohibition left us with a large force of unemployed police officers, who looked for work enforcing the new drug laws. Consequently, these same police officers needed to convince the country that their jobs were important. They did so by scaring parents about the dangers of drugs. All this set the stage for a law passed in the Federal legislature which put a prohibitive tax on marijuana. This is what killed the hemp industry in 1937, since it made business in hemp impossible.[...]this period of time became known as Reefer Madness. "

in Cannabis FAQ, EROWID, by Brian S. Julin

Opiniões: formulando fórmulas.

No que diz respeito ao exercício criativo e argumentativo da escrita temos sempre que manter uma mente aberta, coordenadamente funcional com os conhecimentos de argumentação e gramática que nos é acessível. Mas por vezes recorremos a fórmulas pré-concebidas e estruturalmente necessárias para apresentar o assunto e uma moral adjacente (se houver). O que não é mau. As fórmulas permitem uma organização superficial que nos ajuda a encontrar a nossa forma expressiva. Encontramo-nos na nossa escrita, e a nossa escrita reflecte o nosso pensamento.

Dou muito valor às opiniões, mesmo às contrastantes com as minhas, desde que sejam inteligentemente elaboradas e não “só porque sim”. Gosto de uma boa discussão, menos aquelas em que os limites se excedem e corre-se o risco de perder um amigo. A argumentação mantém-nos alerta e perspicazes, valores necessários a uma boa observação.

Um amigo meu uma vez disse “tem que haver pessoas más para sabermos que somos boas pessoas”. A simplicidade destas noções sociais, que estão embuídas de moral, está alíada à sua função de tranquilizar e esclareçer. Avaliamos a nossa posição no mundo, que às vezes é demasiado grande para nós (e às vezes demasiado pequeno) e podemos pensar que é muito fácil julgar, mas é mais dificil aceitar um juízo diferente do nosso. O orgulho é atacado, e mesmo que ninguém goste de o ver ferido, perante uma inegável verdade somos forçados a aceitar. A aceitação leva ao desenvolvimento mental.

A perspectiva é igualmente importante no que toca a assimilar o que nos é transmitido, pois as nossas observações diárias são um resultado de vários factores. A publicidade, a verdade dos media, o governo do país, as novelas, os documentários, os debates, são tudo métodos subsidiários da televisão (que já uma vez denominei de Rectângulo Mágico, que atrai todos os que se deixam levar pelo maravilhoso virtual). A televisão é dominante na sociedade ocidental, e quer queiramos, quer não, acabará sempre por nos influênciar, pela positiva e, cada vez mais, pela negativa. Daí a necessidade da nossa noção de perspectiva se manter pessoal, enquanto o nosso conhecimento (aliado à inteligência perceptual da realidade) luta contra as forças persuasivas e distorçantes do virtual.

As fórmulas estruturais para a escrita criativa ou argumentativa, juntamente com uma perspectiva definida, juízos de valor, uma boa argumentação e estruturação, são a nossa maneira de transmitir o nosso grito. Esse grito pode significar o quer que seja, mas tem que ser perceptível. Temos todas as ferramentas que precisamos, e não temos desculpa por não intervir nesta mentalidade global que é a sociedade ocidental. Mas também é verdade que ao mesmo tempo que nos dão a capacidade de nos exprimir, são cada vez mais os que se vão exprimir. E isso faz do nosso grito um sussurro.

Tomás J. A. Pinto