sexta-feira, 30 de março de 2007

Sorri e deixa estar.

Citação de "The Sandman" de Neil Gaiman.

“It seemed like the late autumn wind blew them in that night, spinning and dizzying from the four corners of the world. It was a bitch wind, knife-sharp and cutting, and it blew bad and cold. And they came with it, scurrying and skittering, like yellow leaves and old newspapers, from a thousand places and from nowhere at all. They came in their suits and their tee shirts, carrying rucksacks and briefcases and suitcases and plastic bags, muttering and humming and silent as the night. It seemed like the bitter fall wind brought them there. Perhaps it did.”

In The Sandman, The Doll’s House, by Neil Gaiman.


quinta-feira, 29 de março de 2007

Ao abrigo dos ciprestes.

For my ever source of will and inspiration.

Cheiros. Tactos. Visões. Memórias. Contacto. Aventuras do espírito que me elevam e me guiam, puxando por mim como uma corrente, como o sal que me tinge a pele, e que o sol parte, para depois regenerar. A mão que guio e que me guia são os meus sentidos levados à tua forma ao meu lado, e os teus.
Tenho-te à distância da minha mão.

Tomás J. A. Pinto

quarta-feira, 28 de março de 2007

waiting man's game.

O legado de Gutenberg.

Eu andava pelos corredores, numa tentativa de desanuviar os pensamentos lúgubres da passagem de mais um ano enfiado num escritório pouco arrumado e atulhado de papéis. O meu espírito partiu com o ano velho.
Aqui temos a Humanidade no ínicio do século, neste magnífico ano de 1901, prestes a alcançar o seu mais alto potencial, cheio de novidades e engenhocas, e eu enfiado no escritório a arquivar, anotar, escrever e publicar tudo que o ser humano fez, faz e pode vir a fazer. As Letras! Essas sim vão deixar de importar, do modo como as coisas evoluem. Maravilhas da Ciência, a alta dignatária da imaginação humana, que move a sua sombra sobre os Velhos. Classicismo! Quem o quer? Romântismo? Se não cura a Gota e a Febre, então não quero, muito obrigado.
Está um dia espantosamente normal nas ruas desta minha Londres, capital do mau tempo, com raízes na História do mundo. As pessoas andam apressadamente, num ritmo frenético, como óleos de maquinarias. Tanta pressa e não chegam a lado nenhum. Isto quer é engenho, dinâmica, velocidade e segurança! Realmente, para que servem aqueles papeis pintados com tinta, relembrando os hieróglifos egípcios que tantam fascinam mas não esclarecem. Todos são analfabetos! Para quê os livros, artigos e enciclopédias, a não ser para as lareiras, pois a lenha está cara! Ah, aí está uma função para os papeis. Em breve inventarão uma maneira de fazer calor sem fogo, e os autores tornar-se-ão inúteis. Que século espantoso que se aproxima!
Mais um dia no escritório, e os papéis cortam-me os olhos só de olhar para eles. Eles ameaçam-me. Sabem do meu ódio secreto, uma repulsa que só um notário, editor ou escritor podem possuir. Que dor meu Deus! Mas força! Os papéis pagam-me as contas.
Estava eu em mais uma divagação fatal quando sou atacado vísceralmente por um sentimento repentino de alegria. Mas não uma alegria jovial, antes uma vinda de um sentido de segurança. Penso, não, tenho a certeza de que os meus filhos verão neste século uma união humana como nunca antes. As maquinizações unirão os seres operadores e a harmonia velará por todos, mantendo longe a fome, a doença, a guerra, o sofrimento, a desonestidade. Que belo século será este perfeito século XX.
Assim rir-me-ei de todos os autores que sempre existiram e que virão a existir. Tolos! Que deu a Homero e Platão, Aristóteles e S. Jerónimo, Camões e Shakespear, e ainda Eramus, para marcarem as características, os feitos, as lutas e as belas criações humanas em papel, que o tempo se encarrega de comer. As Letras são passageiras. A Ciência perdura, e não teremos que sofrer mais, pois nós evoluímos, e não cometeremos as atrocidades do passado.

Tomás J. A. Pinto

· N. A.: Isto é um exercício de escrita, e não espelha as temáticas e convicções que prezo. As Artes e as Letras têm que ser defendidas para não serem dominadas pela ciência, tão boa como tem vindo a ser (e às vezes nem por isso). O protagonista claramente não entendeu a natureza repetitiva da História humana.


oh yes, my fat rich dream indeed!

Ferula Communis

Montes, pedras, erva, areia, corpos, aves famintas pelo cheiro a carne putrefacta. Era assim a Ilha Germinal. Os Deuses decidiram entregar uma prenda às entidades primordiais, filhos da terra e do sal. O custo da dádiva era incerto, tal como a prenda em si. Secretamente os Deuses poderosos tinham decidido como entregar a prenda celestial ao plano terrestre. Os seres primitivos teriam que lutar por ela, cegamente. E assim o fizeram. “Veneração”! A palavra rebenta estrondosamente nos ouvidos ingénuos dos homens-terra, acompanhada de chuva e trovoada, e a luta começa.
A luta termina com o fim da chuva, e somente um sobrevive. Um ser antropomórfico pisa as areias da ilha primordial, e entrega uma planta incandescente ao sobrevivente, apontando ao mesmo tempo para um objecto disforme e desconhecido. A planta encarcerava o fogo. O sobrevivente pergunta o que é, ao que o ser cósmico recita as palavras divinas, sem mexer a boca, o som saíndo de dentro da terra, e de volta dela. “Vai A-Dam. Leva o fogo e o barco. Do outro lado encontrarás a recompensa chamada Veah. A companheira eterna.”
Foi assim a primeira moira das entidades terrestres.

Tomás J. A. Pinto

N. A.: Moira significa Destino em grego.
Ferula Communis é uma planta umbelífera, em que o fogo arde lentamente sem se apagar. Os povos antigos utilizavam-na para transportar o fogo de um lugar para o outro, conservando-lhe.

Mecanizações

Vivo no quarto andar de um edificio em ruínas, e espero todos os dias pelo senhorio, que ao me exigir uma renda exorbitante, também me cede o direito de ser um inconveniente. Assim ditam as leis, mas não as vejo. Elas não são os super-heróis que hoje em dia se pavoneam por aí, salvando as pessoas. Quem é que eles pensam que são! Ora esta, os super-heróis só existem na banda desenhada! A minha mente já se estava a esquivar ao aborrecimento que é esperar pelo senhorio. O tempo não passa e a minha paciência esgota-se cada vez que oiço o ponteiro dos segundos andar descomplexado. Eu queria ser um ponteiro dos segundos. Sempre a andar, sem parar. Sem problemas e exigências. A não ser que se acabem as pilhas. Esse deve ser a sua preocupação. Chiça já nem um ponteiro dos segundo posso ser, e o senhorio ainda não chegou.

Vivo num apartamento comprado pelos meus pais, numa zona luxuosa da cidade, e cada vez que saio à rua para ir trabalhar, sinto os olhos de alguém a queimar-me os sentidos. Julgam-me. É verdade que o meu trabalho é pouco exigente e a casa que me possui foi uma prenda dos meus pais. Mas isso não lhes dá o direito de me julgarem. Poderia ser pior. Poderia ser uma pessoa insensível e fria para com os problemas dos outros. Sou uma boa pessoa, e não respondo pelo facto dos meus pais serem ricos. Trabalharam para isso! Ando para o trabalho e vejo os problemas dos outros, dessas pessoas anónimas, dos animais abandonados, dos mendigos e das crianças mal-tratadas. A angústia é frustrante por não poder ajudar todos. Talvez por isso é que muitas pessoas desenvolvem uma camada de gelo à volta delas, para que a amargura de não poder salvar todos não lhes partam os braços de tanto segurar uma esperança. Um mundo melhor? Pessoas melhores? A sociedade e as prioridades particulares do todo já sofreram os enganos e as frustrações. Eu aqui rica, e eles à chuva e ao frio! Os animais torturados sobre a tutela de miudos ignóbeis, filhos de pais idiotas que ao chegar o calor, um mísero mês de sol, mar e férias, voltam as costas aos companheiros de familia como se fossem lixo. Como podem eles fazer isso? Deixam os idoso num lar, os pai e as mães que lhes educaram e fizeram felizes, para os empurrarem para o esquecimento! É tão profunda esta ódiosa ignorância que me apetece cortar os pulsos. E as pessoas continuam a julgar.

Vivo numa casa, com a minha mulher e os meus filhos, um rapaz e uma rapariga. Não penso muito em muitas outras coisas a não ser o sustentar da minha família. Chego a casa e ligo a televisão, fumo um cigarro e vou jantar com a minha mulher e os meninos. Meto os miudos na cama, leio um história para eles. Beijo a minha mulher e vou-me deitar. Acordo com o despertador, tomo banho, visto o fato e em meia hora estou atrás de um balcão a atender pessoas. Penso em ir fumar um cigarro assim que passam das dez. Ao fumá-lo penso na minha família, no que poderá ser melhor para eles. E então regresso ao trabalho. Ainda nem são dez e meia e já me doíem os músculos faciais dos sorrisos obrigatórios.

Esta vida de professor tem as suas vantagens, quando se é docente nas Universidades. O meu caso é diferente. Sou educador do primeiro Ciclo, jovem formador destas mentes fetais, ainda verdes demais para serem os nossos líderes, os nossos patrões, os nossos técnicos, os nossos empregados de caixa. Ser educador, professor, agricultor das verdes mentes é em si uma vantagem. Posso faze-los respeitar a ordem natural das coisas, e entender o preciosismo de uma boa educação. Ainda no outro dia riscaram-me o carro, estes vandâlos. Deve ter sido o míudo vesgo do 3º D. Chamei-o à atenção e envergonhou-se em frente à turma toda. Estes miudos são vingativos! O perigo que representam estes cérebros excede a sua imaturidade. E esta é a minha vantagem. Posso evitar as maldades futuras que possam vir a acontecer aos outros. A responsabilidade é grande, e não pode ser destronada pelo medo e a indiferença.

Sou um bêbedo. Um coitado. Sou um renegado do sucesso e um navegador dos mares amarelos das terras alcólicas. Quero pisar as areias da sobriedade, mas como os navegadores, sou para sempre atraído ao mar profundo. A culpa é dos outros! A culpa é dos outros que não quiseram saber de mim, da minha ruína, da minha família e do meu filho, que passa por mim e faz que não me vê. A culpa é dele! Maldito rapaz. Se não quer ser visto comigo em frente aos amigos, secalhar não o devia ter concebido. P’ró diabo com eles todos. “Ó jovem, é mais um Bagaçinho.”

Vivo num centro urbano no meio do nada. Vou-me safando com um part-time. Tirei a Licenciatura em Arqueologia, e trabalho num achado encontrado à duas semanas. Adoro este trabalho. Consigo analisar tudo pelo qual o ser Humano já passou. E sei isso através dos vestígios ritualistas que compunham uma dada comunidade. Conheço o ser Humano através das suas mecanizações.

Tomás J. A. Pinto

terça-feira, 27 de março de 2007

All the King's horses, and all the King's men couldn't open a jar of pickled mustard. - Incompetence of the supposedly competent.

Opiniões: a opinião "pública".

A opinião “pública”.

Uma opinião só é funcional se causar mudanças comportamentais. Logo, o cuidado a ter com o poder opinativo é importantíssimo. O poder de influênciar sujeita-nos a uma responsabilidade inerente, e ao não tomarmos as precauções devidas, deparamo-nos com situações como a de Domingo passado (dia 25 de Março), em que Salazar foi eleito o Melhor Português de sempre. Com razão, o mérito é todo seu Sr. Salazar! O homem ainda depois de morto tão bem consegue desviar as atenções para o forro político-económico do seu poderio (o homem era inteligente claro, mas…) como tem o poder de revelar a ignorância e a hipócrisia da gordura portuguesa. A dita opinião pública, que revela o geral e não o particular, pôs o tormentador dos demais sedentes no topo.
É obvio que todos gostam do simbolismo patriótico da luta contra a opressão, dos cravos nas espingardas, da paz oportunista, quando chega a altura da celebração da liberdade. Pode-se discutir que nos livrámos de mais um tabu português, do medo do passado recente, e que já podemos falar livremente do passado, para um futuro. Os poderosos de hoje bem celebram o seu estatuto, mas não lembram o que custou aos outros oferecer a oportunidade. Eu não posso falar por experiência própria porque não estava vivo, mas consigo elaborar uma opinão e apresentá-la. Portugal sem Salazar é como um slogan americano – “Land of the Free. Land of Oportunity”. E o 25 deAbril é daqui a um mês.

segunda-feira, 26 de março de 2007

Verdades anatómicas da personalidade

Não narro a velocidade fictícia dos irmãos Alegre e Feliz, mas o seu fundo de verdade e consistência. Da Tristeza, que tentou sempre alcançar a sua medida de conforto, falo da sua dormência de brisa passageira, para logo submergir nas águas turvas de Incapacidade. A Vontade veio à Incapacidade e forçou-a a levantar-se, a apoiar-se no joelho e agarrar a mão que a guiava na tormenta. O Engano, de cabeça leve e dada a impulsos espasmáticos, explorando os caminhos bravos e sombreados da montanha, encontrou a Mentira encostada a um grande rochedo, e a Mentira chamou-o. Deparando-se com a facilidade com que o Engano era enganado, a Mentira depressa o usou, tornado-se a Emoção mais dissimulante e a mais receada de todos. A Desconfiança muito se preocupou com esta situação, ora sempre pedida a intervir cada vez que alguem encontrava a Mentira. A Fé mantinha-se alta e frágil, sempre pronta a encontrar a Esperança, e a segui-la nas suas batalhas. Confiança e Orgulho eram irmãos. Sendo súbtis, eloquentes e bravos guerreiros, depressa alcançaram as fileiras da Força. A Vaidade, que passava os seus dias à beira de um lago, olhava perpétuamente para as águas calmas que reflectiam a sua titânica face. Cresceu, e continuou a olhar para o reflexo. Envelheceu e continuou a olhar para o reflexo, sempre enamorada das suas formas, e admirava-se cada vez que encontrava algo novo em si mesmo, rejubilando. Morreu olhando para o reflexo, de coração partido por saber que uma coisa tão bela tinha deixado a terra e a água que a formaram, e por saber que não encontrou os Irmãos do Contentamento, e a sua vida ter sido uma infrutífera. O Destino, que jogava por fora observando as Emoções, só era conhecível, e dado a nós intrigarmos acerca da sua peculiar personalidade, quando pisamos os campos da Escuridão. Esta é a história de Nós e das Emoções, sinais do Caminho e da Força, que estavam além do Bem e do Mal, e que já deixaram este plano.

Tomás J. A. Pinto

O saco

O fumo passa pelos olhos de um velho que tosse convulsivamente, apesar de continuar a enfiar o cigarro pela garganta abaixo. As adagas de fumo provenientes do dito mal entram-me pelos musculos e pelos nervos, arrepiando os cabelos da nuca. Por minha vez acendo um cigarro, enquanto espero pela empregada mirrada e míope, que de certeza me vai trazer o café queimado e o copo de água canalizada, que pela milésima vez escorre para o estômago furando buracos no muco esverdeado, guerreiro defensor morto pelas bactérias virais. O nariz funga e escorre, tão conscientemente que me apercebo e tiro um guardanapo de papel daqueles cilindros publicitários tão afáveis. A simpatia reina neste café duma esquina pouco recomendada.

Não estou aqui porque quero, ainda por cima com uma constipação a crescer nas minhas entranhas. Espero o homem do lixo, aquele sacana que me levou um saco que encostei à parede, ignorando o facto dele estar de braços dados a um contentor rodeado de comparsas. E então o homem levou e só quando o camião abalou é que reparei no rapto. Estava tão ocupado a fazer não-sei-o-quê que permiti o maléovolo avanço do lixeiro. Felizmente fui deligente e consegui contactar a firma, especializada em remoção dos dejectos rotineiros produzidos pelos restantes mamíferos, que prontamente comunicou ao camião furtivo o sucedido antes de chegar à lixeira. Escusado é dizer a trabalheira que os pobres coitados tiveram para encontrar o meu saco, cuidadosamente e árduamente por mim descrito ao telefone, aludindo às questões de um rapaz rouco e pouco iluminado. O trabalho de um homem do lixo é penoso, e não menos honrado, pois poucos o fariam enquanto homens menores se gabam do seu salário everestiano, apesar de eles apenas ficarem pelo primeiro posto de controlo.

Lá chegou enfim o homem. Curiosamente adornado (nunca tinha visto um lixeiro enquanto o sol queima) chegou-se ao pé de mim depois do meu dedo ter partido na prateleira que surrateiramente se pôs atrás de mim, graças à minha tentativa de o chamar e apressadamente acabar com o triste assunto. Entregou-me o saco, algo sujo e envolvido num odor de que não faço ideia como chegou lá. Felizmente tudo se esclareceu e agradecendo o seu gesto e dos seus colegas, fiz com que a empregada mirrada parásse de cuscar e nos trouxesse dois licores de fruta, ao qual o homem rude mas elegante fez uma cara de contentamento caloroso. Despedi-me com honras e saltei para o passeio. A minha felicidade era tanta que quase não reparei na pancada solta que me tocou no crânio ao virar da esquina e me apagou por completo. Tinham-me levado o saco.

Tomás J. A. Pinto

A missão

O gato luta. O gato mata. O gato corre e caí entre as trincheiras elameadas. O gato confia na espingarda M1 Garand que lhe é confiada, poupando a munição para quando mais precisa. Deixa o trabalho sujo para as garras e os dentes. O gato não pensa na Grande Guerra, não pensa na luta entre a sua raça e a antagonizante raça dos canídeos. O gato só sabe que tem que chegar a um certo ponto sem ser detectado, para depois enfiar dois tiros nos crâneos caninos. Este, claro, é um gato sniper. Soldado da infantaria, o seu lustruoso pêlo preto chamou logo a atenção do seu sargento formador. Indicou-o logo para a Companhia F, um esquadrão de assassinos silenciosos, que depressa lhe moldou na máquina de matar que é hoje em dia, o mesmo que corre na lama sangrenta, coberto dos corpos dos seus camaradas. Garras, pêlo, bigodes e orelhas espalhadas pelas explosões do napalm, arma cobarde inventada pelos cães, envolvem o seu pêlo. Alguns puderão futuramente discutir o que é cobarde ou não numa guerra. Mas para este gato matar não é uma coisa levada levemente, ao toque de um botão. É algo honroso, pelo qual se tem que passar inúmeras dificuldades e perigos mortíferos.

Encontrou-se no local.

O local da chacina. Toda a sua equipa foi desfeita em pedaçinhos. Nunca mais iria comer comida enlatada, daquela dada pelos fracos humanos, facilmente dominados. Realmente, foram os humanos a causa da Grande Guerra. Foi a luta pelo domínio senhorial sobre os escravos humanos que levou o Primeiro Cão a insultar o Primeiro Gato, e por aí adiante. Os passos para a guerra são sempre pequenos, mas deixam as suas pégadas.

Toda a sua equipa estava morta. O gato estava sozinho. Tinha acabado de matar os guardas de um posto de comando. A sua missão era roubar os documentos secretos, localizadores de agentes infiltrados. Gatos sujeitos a lavagens cerebrais através da tortura. “Esses filhos da puta! Que desfelínicidade!” – pensou o gato sniper. “Vão pagar p’las orelhas”. Os dois Dobermans e o Pastor Alemão já se encontravam mortos, mas ainda restava os outros dentro do posto, e já não tinha munições. Teria que usar as garras, afiadas no tronco de uma amendoeira. “Não devia ter disparado aqueles dois tiros antes de chegar cá. Merda!”. Referia-se pois a um incidente à cerca de dois quilómetros atrás, quando encontrou dois cães a tentarem violar um gata, animal corajoso que se voluntariou para lutar na Grande Guerra. Teve que os matar, mas sem revelar a sua localização. No momento esboçou um sorriso, mas agora remoía em dúvidas. Teria que usar as garras e entrar a matar. Jogou a arma fora e aproximou-se sorrateiramente do posto de comando. Viu 4 cães, dois Rottweilers matulões, um Beagle e um Borzoi. Era uma comitiva de altas patentes com os dois guarda-costas. O que faziam ali o gato não sabia, mas também não lhe interessava, e jogando uma bomba de fumo para dentro do posto entrou ferozmente, pronto para a chacina. Em menos de nada o gato cumpriu a sua missão, com uma arte marcial severa, aprendida na animosidade da Companhia F. Estavam todos mortos, e os documentos capturados. Eis então que um dos Rotts, num último esforço antes de morrer, disparou dois tiros, falhando um, enquanto que o outro acertava na perna do gato. Deitado no chão, o gato depressa fez um garrote e fugiu coxeando. “O gato não pensa na Grande Guerra. O gato luta e mata. O gato corre!” pensava para si, as palavras ecoando a um volume estrondoso na sua cabeça, apenas abafado pelo batimento cardíaco pululante. Conseguiu chegar a uma clareira no meio do bosque. Território inimigo. O alerta tinha sido dado acerca do roubo, e não tardaria até todo bosque ser patrulhado pelos canídeos. Tinha que sair dali o mais depressa possível. Mas não conseguiu. Dentro de uma hora os canídeos tinham encercado o gato, mas não antes deste comunicar ao Comando Central via rádio os elementos constítuintes do grupo infiltrado, os Judas forçados.

Morreu o gato, mas morreu não temendo a morte, pois sabia que o destino de um assassino é uma morte em batalha. Tinha cumprido a sua missão, mas preocupava-o o outro plano existêncial. O Grande Animal, desapontado com as suas acções, poderia faze-lo voltar como um cão. Nem tudo na guerra é desculpável, e o gato era um crente, assim como um assassino. A única coisa que lhe dava um certo conforto era o salvamento da jovem gata. “Será que se tinha safado?”. Foi o único acto de bondade que tinha praticado naquela miserável guerra, colocado no seu caminho para atenuar o desgosto do Grande Animal.

Cinco anos passados e a Grande Guerra tinha terminado. Um memorial foi construído para lembrar as vítimas caídas em combate. Surge uma sombra junto ao monte solene, e colocando uma flor vermelha escura, corria com os olhos os nomes dos guerreiros caídos, interrogando-se qual deles teria sido o seu salvador.

Tomás J. A. Pinto

Birra de menino

“Não me venham cá com estas merdas que eu cá sei o que me escondem o que me devem” berrava o jovem encarregado do armazenamento de material, o Sr. Martins, o Bernardo (coitado devia ter pais que pouco gostavam dele), visívelmente afectado pelo despedimento e fraca compensação. Segredos possuía ele sobre a direcção, como fazia crer pela gritaria, mas não os revelava prontamente, apesar do seu estado birrento. Sinceramente, o pessoal cá do escritório secundário à algum tempo que se mantinha de sobressalto. Rumores de uma vaga de despedimentos. Obviamente o Sr. Martins, homem novo, mas enfezado e pálido, tinha sido a primeira baixa, mas talvez o seu predicamento fosse resultado de uma descoberta escândalosa acerca da direcção. Eles dizem pouco, mas sabem ordenar, coisa que patrões como o Excelentíssimo Sr. Marques tinham que tirar um curso especializado e conceituado além-fronteiras.

Foi assim que começou o que ficou conhecido como “A Loucura de Bernardo Martins: Massacre no Escritório”, amplamente noticiado pelos media. Até houve quem jurasse que o Bernardo já fosse algo instável de nascença (resultado da tutela dos pais talvez), mas isso eram só os oportunistas e mirones que ansiavam aparecer no rectângulo mágico. Eu sabia melhor. Foi o desdém e a pouca fé nas ameaças de um homem franzido e pálido que despertou uma raiva clássica no Sr. Bernardo Martins, digna de um troiano defendendo a sua parcela de uma Tróia afundada. Heitor estaria orgulhoso de uma raiva e honra justificadas como as do Sr. Martins.

Voltou pouco antes das sete, altura em que todos nós nos encontrávamos fatigados e mórbidamente desejantes de abandonar o local de escravatura compensada, e trazia consigo uma foiçe (“pareçe um comunista” pensei) e um martelo (“é comunista de certeza!). Sentimos todos, inclusive os directores e o patrão (que por algum acaso estranho do destino permaneceram até à hora de fecho, pois saíam sempre pelas sombras das quatro horas) uma ligeira dormência, e entramos num sono leve mas possessivo. Bernardo amarrou-nos todos às cadeiras Ikeaistas e juntou-nos num círculo, de maneira a gozarmos o espetáculo. Começou com os estagiários (coitados!), depois com os arquivistas (pobres diabos!), seguindo para os notistas e escriturários (desgraçados!), e finalmente começou a rolar os olhos serenos para as caras petrificadas da direcção. Este esquema hierárquico foi, claramente, concebido para que o Sr.Marques, já não muito excelente, observasse o destino que tinha distribuído aos seus empregados, para que acordasse todas as manhãs para as caras desfeitas, rasgadas e esmagadas dos seus subalternos diante dos seus olhos, sentindo o suor dedicado e o sangue delicado nas suas mãos para o resto da sua vida. Isto era a compensação do Sr. Martins, de olhos serenos, afundados na carne negra das suas olheiras. Permaneceu largos minutos em frente ao patrão sovina, queimando o seu olhar maníacamente calmo no terror do olhar do seu superior. E matou-se com um sorriso angélico nos lábios. O patrão viveu, embora encontrasse a paz num belíssimo exemplar de Bourbon americano e um frasco de comprimidos. Eu infelizmente pertencia à classe dos escriturários, e as pessoas ainda choram por mim.

Tomás J. A. Pinto

Paz em tons cinza-transparente

Numa tarde permanentemente chuvosa Andrónico pensou para si que a sua vida assemelhava-se aos pingos da chuva que se precipitavam sobre a sua cabeça. Eram tristes e de tom cinza transparente, mas essencial ao progresso da vida e bem-aventurança do mundo. Daí que viesse a encontrar alguma paz de espírito e sossego, encostado ao tronco de uma árvore rugosa e carregada de folhas secas, enquanto via a chuva terminar lentamente, e o vento acalmar. Surgiu então um palhaço, e despejando um balde de água em cima o ensopou.

Tomás J. A. Pinto