quarta-feira, 23 de maio de 2007

Potencialidades imaginárias e definitivas.

Vasculho e percorro o meu corpo. A superfície de carne, pele e cabelos que protege o meu interior sagrado. O toque dos dedos percorre o braço ao encontro das extremidades nervosas do sentimento. Ásperas pinceladas de unhas na carne esplonteam vontades rigorosas de deformação, de poder. O meu corpo é meu, poderei fazer o que quero com ele? Somos definidos com a forma da nossa espécie, e nada mais. Concedem-nos forma inalterável e definitiva, o ser perfeito. A massa cinzenta do cérebro desdobra-se no potencial dominador de poder. O poder humano. O poder sobre os outros. Mas sobre os nossos corpos? Alvos de atentados vivênciais deformam e destroíem, externos à vontade individual. Quero crescer um braço no meu braço, estabelecer funcionalidade. Mas não posso. Eu sou como sou, e se não fosse seria atacado pelos outros individuos. Ser diferente hoje é ser igual amanhã. Quero formar a minha pessoa, e por dentro podemos ser o que quisermos, ninguém nos impede. Ninguém manda no pensamento, o progresso interno sacramente protegido. Quero ser perfeito. Por fora, aceito o que sou. Não altero o percurso do que me define. Sou humano, na vasta potencialidade que promete o afastamento do que é ser humano. Avançamos na distância. Ser humano é não ser humano. Poderá ser que um dia sejamos o nosso potencial máximo, o nosso ideal. O meu ideal.

Tomás J. A. Pinto

As realidades de perigo e do fim das vidas.

Numa tal manhã de singular beleza, a chuva fazia pouco mais que molhar a gola do enrugado casaco. Ao escorrer as arrepiantes gotas frias pelas costas, Samuel era cruelmente relembrado de que era segunda-feira. Encolhendo os ombros agitou-se para afastar os arrepios e a má disposição, que o belo dia não deixava de o lembrar através do reflexo dos vidros dos prédios. Montanhas e montanhas de metal. Homens e mulheres que funcionam uns como peças, outros como óleo, impedindo que a máquina industrial aqueça demasiado ao ponto de fundir as peças, numa confusão resultante de uma má gestão de recursos.
Indubitávelmente, o elevador subia lentamente. Os espíritos de Samuel não. Outro dia de esforço adverso, cortes de papel e olhos avermelhados.
Passados dois minutos sentado à secretária, a secretária levantou-se e derrubou Samuel para o chão.
- “Que pensa que está a fazer? Agora é sempre a mesma coisa não? Olhe que posso acusá-lo de assédio sexual!” – gritou a secretária, enquanto ajustava os óculos e o decote.
Samuel pensou que a brincadeira não funcionou lá muito bem. Uma tentativa de alegrar o ambiente da sua cabeça aborrecida pelo cinzento das paredes. “O decote é só para o chefe” pensou Samuel, levantando-se.
Passados cinco minutos à secretária, os papeis já vinham em camiões, empilhandos em grupos desorganizados em cima dos papeis deixados na sexta-feira. Lapso prepositado, visando uma fuga repentina dos últimos quinze minutos da semana.
Tentando navegar pelas hordas inimigas, os batalhões de papel, Samuel sentiu uma picada leve e penetrante. A sua derme levantou, espirrou e começava a arder num fogo de mato que surgira espontâneamente. Sentindo o ardor do corpo, tanto dentro como fora, provocando alterações hormonais do seu estado humano, olhou maníacamente em todos os lados, num ar de desentendimento, medo e confusão. Receoso do seu destino, procurou infernalmente o bicho infernal que o picara. Desarrumando a sua secretária, assustava os seus colegas. Encontrou o maldito esmagado debaixo de uma pilha de árvores abatidas, transformadas em papeis.
“Maldição! Que raio de coisa é esta?” pensou Samuel furiosamente ao pegar pelas asas o insecto amaldiçoado. O ardor já lhe causava tremores nas mãos, e a visão turvara-se ao encontro da sua sanidade e bem-estar. Agora apenas queria trabalhar, criar, assinar formulários e picar o ponto do seu cartão empresarial. Mas não conseguiu. As imagens avulsadas de pesadelos e receios empilhavam-se na sua mente, e o seu ritmo cardíaco subiu, em esmagadores pulsações que jorravam espasmáticamente pelos seus músculos e orgãos. As picadas infernais de sangue mal distribuído eram demais para a sua força de vontade. Queria era trabalhar. Estar bem, no seu cantinho, com o seu salário ao fim do mês. A sua mente já previa dores e problemas financeiros. “Mas o que é isto Deus!” gritou, correndo aos zigue-zagues pelo escritório, empurrando os colegas, como alguém debaixo de água que está com extrema falta de ar.
Chegou ao telhado, a um terraço aberto decorado com antenas, cabos e parabólicas. Um sanctuário metálico, as raízes que bebem na dependência automatizada do Homem. Samuel pôde constantar que realmente era um dia bonito, a visão era bela e o vento era precioso, batendo-lhe na cara, acalmando-o ligeiramente, se bem que o seu sangue continuava a escorrer pelo interior do seu corpo como ácido. Conseguiu apoiar-se no gradeamento lateral, ouvindo os pombos e o barulho dos carros, que enchiam os pulmões de veneno lento. Samuel acalmou-se. Respirou fundo. Não conseguia concentrar-se no que estava a acontecer, o que estava à sua volta, a mexer-se em distorções alheias e misteriosas. Apenas sentia a cara esfriada pelo vento, embora o resto do seu corpo ardesse num fogo interno, e em espásmos tão fortes que partiam-lhe as costelas. Respirando fundo, Samuel pensou que podia ser que este castigo animalesco fosse só um aviso, que lhe daria o tempo suficiente, uma oportunidade, para se curar. A sua vida iria correr bem. Não desperdiçaria os momentos. Seria o modelo genial da humanidade, em todo o seu esplendor. E enchendo os pulmões do ar que subia da estrada, e com o vento na cara esperançada, rebentou numa nuvem de carne, osso e sangue, pingando o gradeamento e as lajes do terraço, o belo dia manchado de sangue nos vidros do prédio.
Tomás J. A. Pinto

sexta-feira, 11 de maio de 2007

quarta-feira, 9 de maio de 2007

Citação de J. R. R. Tolkien

Esta citação refere-se a um dos tópicos presentes no prefácio para "The Lord of the Rings: The Fellowship of the Ring" de J. R. R. Tolkien. O tópico trata da intenção do autor, aliada à associação alegórica (que se revela infundada) feita entre a Segunda Grande Guerra Mundial, ocorrida na primeira metade do século XX, e a guerra levada a cabo na Terra Média.
Na altura que li a obra prestei uma especial atenção ao tópico. Na escola, ao estudar literatura, nas suas formas de análise e crítica, uma coisa que aprendi à partida foi que nunca podemos saber exactamente qual a intenção do autor (textual ou empírico) ao escrever uma obra. Apenas podemos conjecturar e interpretar segundo determinadas temáticas. Especular, portanto.
Interessava-me então a opinião concreta de um autor sobre a intenção, mais do que a de qualquer crítico ou teorizador, tão esclarecedores quanto sejam.
A intenção pura do autor é uma coisa incompreensivél para o leitor, mas aqui Tolkien resolveu esclarecer algumas perguntas e curiosidades acerca da escrita de "The Lord of the Rings".


"The prime motive was the desire of a tale-teller to try his hand at a really long story that would hold the attention of readers, amuse them, delight them, and at times maybe excite them or deeply move them. As a guide I had only my own feelings for what is appealing or moving, and for many the guide was inevitably often at fault. Some who have read the book , or at any rate have reviewed it, have found it boring, absurd, or contemptible; i have no cause to complain, since i have similar opinions of their works, or of the kinds of writing that they evidently prefer.
[...] The most critical reader of all, myself, now finds many defects, minor and major, but being fortunately under no obligation either to review the book or to write it again, he will pass over these in silence, except one that has been noted by others: the book is to short.
As for any inner meaning or 'message', it has in the intention of the author none. It is neither allegorical nor topical. As the story grew it put down roots (into the past) and threw out unexpected branches; but its main theme was settled from the outset by the inevitable choice of the Ring as the link between it and The Hobbit.
[...] It was written long before the foreshadow of 1939 had yet become a threat of inevitable disaster [...] Its sources are things long before in mind, or in some cases already written, and little or nothing in it was modified by the war that began in 1939 or it's sequels.
[...] Other arrangements could be devised according to the tastes or views of those who like allegory or topical reference. But i cordially dislike allegory in all its manifestations , and always have done so since i grew old and wary enough to detect its presence. I much prefer history, true or feigned, with its varied applicability to the tought and experience of readers. I think that many confuse 'applicability' with 'allegory'; but one resides in the freedom of the reader, and the other in the purposed domination of the author."

in The Lord of the Rings, J. R. R. Tolkien.

quarta-feira, 2 de maio de 2007

Século errado.

“Não serei um incapaz… serei grande e ambidestro, capaz de conceber as mais incríveis eloquências físicas e dimensionalmente excepcionais obras que algumas mãos humanas haverão jamais fazer.”

“Cala-te ignorante, e põe as mãos à obra. És um molengas, como se viu pela perspicácia que demonstras-te ao fugir do assunto e da obra que temos pela frente. Repara que falaste no tempo futuro. Serás… mas não és. És um incapaz. Mãos à obra.”

“Verifique, caro executante de obras perras e difíceis, que estas minhas mãos transbordam de bolhas, e com o risco que corro em levar com um jacto de pus no olho, poderei futuramente reclamar um prémio de injúria.”

“Cala-te!”

“A ideia fica assente portanto.”

Este meu chefe, enfim, é homem para inimagináveis besteiras e insuficiências verbais. Eu estou certo de que uma alma como a minha pertence mais ao século das grandes obras humanas e de divinas descobertas de engenharia. Não arrisco ao dizer que seria um génio, um génio que simplesmente foge ao tempo dos génios mal compreendidos e sofredores. Seria um aristocráta, mas seria um snob consciente do trabalho árduo dos operários, serventes e criadas, e por isso não os chatearia muito, apenas o necessário para fazer com que as coisas fossem executadas. Aqui o meu superior pensa que sou maluco, mas noutro século ele seria o único homem capaz de lavar a minha sanita e pouco mais.

“Não te vejo a trabalhar.”

“Com certeza meu caro chefe executante das simples tarefas…”

“O quê! Chamaste-me simples?”

“Tudo num bom sentido é óbvio. Os complicados são complicados, e as pessoas que retêm um certa simplicidade são as mais felizes, não concorda?”

“Humpf… Talvez tenhas razão. Mãos à obra.”

“Mas como à pouco estava a dizer, antes de ser simplesmente interrompido, estava só a executar mentalmente a organização do trabalho, antes de passar ao trabalho própriamente dito.”

“Cheira-me a esturro, e se não começas a meter óleo na dobradiça na porta do carro do patrão vais ver o que é bom para a tosse. Pode ser que te passe essa eloquência.”

“Mas meu caro, esta minha eloquência define-me. É parte do que sou, e representa o meu brilhante, embora pobre, carácter. Se quer saber, dedico-me a todas as áreas do conhecimento artístico e ciêntifico.”

“Não quero saber. Trabalha!”

“Sabe, neste ramo convém saber de tudo um pouco, e as capacidades de interacção laboral são do maior valor.”

“Aí está, laboral. Onde está a tua actividade laboral?”

“Com o chefe sempre a interromper o meu fluxo cerebral e exercício social, sem mencionar o dispêndio no exerciçio das funções gramaticais, não consigo trabalhar.”

“Sinceramente, já estás a passar das marcas seu idiota. Eu aqui quase a rebentar uma artéria para pôr a mexer esses teus ossos, e tu ainda tentas dar-me a volta? Dás-me cabo dos nervos! É agora, deixaste-me sem paciência. Vais levar…”

Foi no momento em que o meu caro colega executante de matérias do âmbito físico e penoso tentou levar a sua mão fechada numa forma de escultura abstracta à minha cara, de compleição fina e sensível, que o patrão chegou. O patrão era um alto dignatário do governo, com casas em tudo que era país civilizado, como se quer. Possuía servos, criados e empregados. Uma vasta gama de atletas fine-tuned, que mantinha sempre às suas ordens, como era o meu caso e o do meu superior violento. Reparei que o patrão, ao chegar, se estava a dirigir para o que lhe parecia como o ínicio de uma contenda de proporções violentas, que decorreria durante o horário de trabalho. Eramos nós pois claro. O patrão arrastou-se imediatamente para o local do nosso trabalho, trabalho esse agora transfigurado inocentemente numa disputa.

“O que se passa aqui? O que vem a ser isto… esta vergonha na minha casa?”

O meu superior bem tentou explicar, mas o patrão parecia não querer saber. Bastou apenas a observação da mão abstracta a dirigir-se para a minha fina e sensível cara para formular uma opinião, e o patrão raramente muda o cartuxo cerebral, sendo difícil mudar-lhe as ideias.

“Patr.. Patrão, ex… excelentíssimo senhor, deixe-me explicar.”

“Não há nada para explicar. O senhor sabe as regras. Está despedido.”

Entre os berros de revolta do meu caro superior, as expulsões e os juramentos acerca da minha morte, que me esperaria num beco escuro, o patrão prontamente seguiu para outros desígnios, o eterno escravo das agendas. Evitarei becos escuros então.

Ora, é o que afirmo. Se eu tivesse nascido noutro tempo, este tipo de incidentes nunca seriam capazes de ganhar forma, visto que seria um snob respeitador do trabalho servil. Seria mais brando no meu caro colega executante. Apenas uma leva chicoteada pelas costas. Um pequeno correctivo. Enfim, regresso energéticamente ao trabalho.

“Ora vamos lá tratar de ti minha maçadora dobradiça, maravilha de engenharia. Já causaste bastantes incómodos. Ora, mas nem chias…”

Tomás J. A. Pinto

terça-feira, 1 de maio de 2007

Gravidade

Com um cansaço absoluto da mente, demente ao ponto de virar as costas à lucidez do dia matinal, verteu lágrimas de alegria calma ao perceber o sentido das noções utópicas do fundamento fraco de liberdade e convivência. Não podendo realmente sentir alegria, nem calma nem agitada, as lágrimas caíram à terra seca, criando rachas geométricamente estruturadas. Olhando para as cavernosas cavidades da terra, e admirando a sua organização, jogou-se para dentro na hipótese de bater com a cabeça ou com o ombro em alguma coisa afiada. Raios fugitivos e sombras da luz respicaram-lhe os olhos ao longo da descida, e os espelhos que espelhavam as luzes criavam formas intrínsecas e complexas, dignas de choro. Explorava a descida, e sentia-se a subir. Alguma emoção estrangeira ao seu organismo acabava de chocar com os seus músculos tensos, dilatando-os. A calma e o clamor de emoções criaram um fluxo de pânico. Sabia que a aterragem iria doer, por isso, para se abstrair, manteve-se a observar minuciosamente os reflexos da luz, que criavam túneis e grutas escondidas pelas sombras. Parecia-lhe que cada vez que encontrava uma caverna ou um túnel novo encontrava outros de seguida, e passaria para a observação sequencial deles, esqueçendo os outros, e assim consequetivamente. Cansado, quis subir, mas apercebeu-se que ainda estava a descer. Via, clara como o dia, uma lágrima do tamanho dele, a cair ao seu lado e ao seu ritmo. A água reflectia-lhe o rosto, distorcido porém. Reflectia ainda as luzes e os espelhos e as cavernas e os túneis. Estavam a cair em direcção ao fim, mas se era para cima, não sabia. Foi súbitamente agarrado por um estalo barulhento, o som de ossos a partir, e, de novo com os pés na terra e ao ar livre, viu a lágrima a aterrar e a alterar a terra seca.

Tomás J. A. Pinto