quarta-feira, 23 de maio de 2007

As realidades de perigo e do fim das vidas.

Numa tal manhã de singular beleza, a chuva fazia pouco mais que molhar a gola do enrugado casaco. Ao escorrer as arrepiantes gotas frias pelas costas, Samuel era cruelmente relembrado de que era segunda-feira. Encolhendo os ombros agitou-se para afastar os arrepios e a má disposição, que o belo dia não deixava de o lembrar através do reflexo dos vidros dos prédios. Montanhas e montanhas de metal. Homens e mulheres que funcionam uns como peças, outros como óleo, impedindo que a máquina industrial aqueça demasiado ao ponto de fundir as peças, numa confusão resultante de uma má gestão de recursos.
Indubitávelmente, o elevador subia lentamente. Os espíritos de Samuel não. Outro dia de esforço adverso, cortes de papel e olhos avermelhados.
Passados dois minutos sentado à secretária, a secretária levantou-se e derrubou Samuel para o chão.
- “Que pensa que está a fazer? Agora é sempre a mesma coisa não? Olhe que posso acusá-lo de assédio sexual!” – gritou a secretária, enquanto ajustava os óculos e o decote.
Samuel pensou que a brincadeira não funcionou lá muito bem. Uma tentativa de alegrar o ambiente da sua cabeça aborrecida pelo cinzento das paredes. “O decote é só para o chefe” pensou Samuel, levantando-se.
Passados cinco minutos à secretária, os papeis já vinham em camiões, empilhandos em grupos desorganizados em cima dos papeis deixados na sexta-feira. Lapso prepositado, visando uma fuga repentina dos últimos quinze minutos da semana.
Tentando navegar pelas hordas inimigas, os batalhões de papel, Samuel sentiu uma picada leve e penetrante. A sua derme levantou, espirrou e começava a arder num fogo de mato que surgira espontâneamente. Sentindo o ardor do corpo, tanto dentro como fora, provocando alterações hormonais do seu estado humano, olhou maníacamente em todos os lados, num ar de desentendimento, medo e confusão. Receoso do seu destino, procurou infernalmente o bicho infernal que o picara. Desarrumando a sua secretária, assustava os seus colegas. Encontrou o maldito esmagado debaixo de uma pilha de árvores abatidas, transformadas em papeis.
“Maldição! Que raio de coisa é esta?” pensou Samuel furiosamente ao pegar pelas asas o insecto amaldiçoado. O ardor já lhe causava tremores nas mãos, e a visão turvara-se ao encontro da sua sanidade e bem-estar. Agora apenas queria trabalhar, criar, assinar formulários e picar o ponto do seu cartão empresarial. Mas não conseguiu. As imagens avulsadas de pesadelos e receios empilhavam-se na sua mente, e o seu ritmo cardíaco subiu, em esmagadores pulsações que jorravam espasmáticamente pelos seus músculos e orgãos. As picadas infernais de sangue mal distribuído eram demais para a sua força de vontade. Queria era trabalhar. Estar bem, no seu cantinho, com o seu salário ao fim do mês. A sua mente já previa dores e problemas financeiros. “Mas o que é isto Deus!” gritou, correndo aos zigue-zagues pelo escritório, empurrando os colegas, como alguém debaixo de água que está com extrema falta de ar.
Chegou ao telhado, a um terraço aberto decorado com antenas, cabos e parabólicas. Um sanctuário metálico, as raízes que bebem na dependência automatizada do Homem. Samuel pôde constantar que realmente era um dia bonito, a visão era bela e o vento era precioso, batendo-lhe na cara, acalmando-o ligeiramente, se bem que o seu sangue continuava a escorrer pelo interior do seu corpo como ácido. Conseguiu apoiar-se no gradeamento lateral, ouvindo os pombos e o barulho dos carros, que enchiam os pulmões de veneno lento. Samuel acalmou-se. Respirou fundo. Não conseguia concentrar-se no que estava a acontecer, o que estava à sua volta, a mexer-se em distorções alheias e misteriosas. Apenas sentia a cara esfriada pelo vento, embora o resto do seu corpo ardesse num fogo interno, e em espásmos tão fortes que partiam-lhe as costelas. Respirando fundo, Samuel pensou que podia ser que este castigo animalesco fosse só um aviso, que lhe daria o tempo suficiente, uma oportunidade, para se curar. A sua vida iria correr bem. Não desperdiçaria os momentos. Seria o modelo genial da humanidade, em todo o seu esplendor. E enchendo os pulmões do ar que subia da estrada, e com o vento na cara esperançada, rebentou numa nuvem de carne, osso e sangue, pingando o gradeamento e as lajes do terraço, o belo dia manchado de sangue nos vidros do prédio.
Tomás J. A. Pinto

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