quarta-feira, 2 de maio de 2007

Século errado.

“Não serei um incapaz… serei grande e ambidestro, capaz de conceber as mais incríveis eloquências físicas e dimensionalmente excepcionais obras que algumas mãos humanas haverão jamais fazer.”

“Cala-te ignorante, e põe as mãos à obra. És um molengas, como se viu pela perspicácia que demonstras-te ao fugir do assunto e da obra que temos pela frente. Repara que falaste no tempo futuro. Serás… mas não és. És um incapaz. Mãos à obra.”

“Verifique, caro executante de obras perras e difíceis, que estas minhas mãos transbordam de bolhas, e com o risco que corro em levar com um jacto de pus no olho, poderei futuramente reclamar um prémio de injúria.”

“Cala-te!”

“A ideia fica assente portanto.”

Este meu chefe, enfim, é homem para inimagináveis besteiras e insuficiências verbais. Eu estou certo de que uma alma como a minha pertence mais ao século das grandes obras humanas e de divinas descobertas de engenharia. Não arrisco ao dizer que seria um génio, um génio que simplesmente foge ao tempo dos génios mal compreendidos e sofredores. Seria um aristocráta, mas seria um snob consciente do trabalho árduo dos operários, serventes e criadas, e por isso não os chatearia muito, apenas o necessário para fazer com que as coisas fossem executadas. Aqui o meu superior pensa que sou maluco, mas noutro século ele seria o único homem capaz de lavar a minha sanita e pouco mais.

“Não te vejo a trabalhar.”

“Com certeza meu caro chefe executante das simples tarefas…”

“O quê! Chamaste-me simples?”

“Tudo num bom sentido é óbvio. Os complicados são complicados, e as pessoas que retêm um certa simplicidade são as mais felizes, não concorda?”

“Humpf… Talvez tenhas razão. Mãos à obra.”

“Mas como à pouco estava a dizer, antes de ser simplesmente interrompido, estava só a executar mentalmente a organização do trabalho, antes de passar ao trabalho própriamente dito.”

“Cheira-me a esturro, e se não começas a meter óleo na dobradiça na porta do carro do patrão vais ver o que é bom para a tosse. Pode ser que te passe essa eloquência.”

“Mas meu caro, esta minha eloquência define-me. É parte do que sou, e representa o meu brilhante, embora pobre, carácter. Se quer saber, dedico-me a todas as áreas do conhecimento artístico e ciêntifico.”

“Não quero saber. Trabalha!”

“Sabe, neste ramo convém saber de tudo um pouco, e as capacidades de interacção laboral são do maior valor.”

“Aí está, laboral. Onde está a tua actividade laboral?”

“Com o chefe sempre a interromper o meu fluxo cerebral e exercício social, sem mencionar o dispêndio no exerciçio das funções gramaticais, não consigo trabalhar.”

“Sinceramente, já estás a passar das marcas seu idiota. Eu aqui quase a rebentar uma artéria para pôr a mexer esses teus ossos, e tu ainda tentas dar-me a volta? Dás-me cabo dos nervos! É agora, deixaste-me sem paciência. Vais levar…”

Foi no momento em que o meu caro colega executante de matérias do âmbito físico e penoso tentou levar a sua mão fechada numa forma de escultura abstracta à minha cara, de compleição fina e sensível, que o patrão chegou. O patrão era um alto dignatário do governo, com casas em tudo que era país civilizado, como se quer. Possuía servos, criados e empregados. Uma vasta gama de atletas fine-tuned, que mantinha sempre às suas ordens, como era o meu caso e o do meu superior violento. Reparei que o patrão, ao chegar, se estava a dirigir para o que lhe parecia como o ínicio de uma contenda de proporções violentas, que decorreria durante o horário de trabalho. Eramos nós pois claro. O patrão arrastou-se imediatamente para o local do nosso trabalho, trabalho esse agora transfigurado inocentemente numa disputa.

“O que se passa aqui? O que vem a ser isto… esta vergonha na minha casa?”

O meu superior bem tentou explicar, mas o patrão parecia não querer saber. Bastou apenas a observação da mão abstracta a dirigir-se para a minha fina e sensível cara para formular uma opinião, e o patrão raramente muda o cartuxo cerebral, sendo difícil mudar-lhe as ideias.

“Patr.. Patrão, ex… excelentíssimo senhor, deixe-me explicar.”

“Não há nada para explicar. O senhor sabe as regras. Está despedido.”

Entre os berros de revolta do meu caro superior, as expulsões e os juramentos acerca da minha morte, que me esperaria num beco escuro, o patrão prontamente seguiu para outros desígnios, o eterno escravo das agendas. Evitarei becos escuros então.

Ora, é o que afirmo. Se eu tivesse nascido noutro tempo, este tipo de incidentes nunca seriam capazes de ganhar forma, visto que seria um snob respeitador do trabalho servil. Seria mais brando no meu caro colega executante. Apenas uma leva chicoteada pelas costas. Um pequeno correctivo. Enfim, regresso energéticamente ao trabalho.

“Ora vamos lá tratar de ti minha maçadora dobradiça, maravilha de engenharia. Já causaste bastantes incómodos. Ora, mas nem chias…”

Tomás J. A. Pinto

Um comentário:

Tania disse...

eu não sou snob, eu repito eu não sou snob. Já quanto ao Aphex é outra conversa... :)