quarta-feira, 28 de março de 2007

Mecanizações

Vivo no quarto andar de um edificio em ruínas, e espero todos os dias pelo senhorio, que ao me exigir uma renda exorbitante, também me cede o direito de ser um inconveniente. Assim ditam as leis, mas não as vejo. Elas não são os super-heróis que hoje em dia se pavoneam por aí, salvando as pessoas. Quem é que eles pensam que são! Ora esta, os super-heróis só existem na banda desenhada! A minha mente já se estava a esquivar ao aborrecimento que é esperar pelo senhorio. O tempo não passa e a minha paciência esgota-se cada vez que oiço o ponteiro dos segundos andar descomplexado. Eu queria ser um ponteiro dos segundos. Sempre a andar, sem parar. Sem problemas e exigências. A não ser que se acabem as pilhas. Esse deve ser a sua preocupação. Chiça já nem um ponteiro dos segundo posso ser, e o senhorio ainda não chegou.

Vivo num apartamento comprado pelos meus pais, numa zona luxuosa da cidade, e cada vez que saio à rua para ir trabalhar, sinto os olhos de alguém a queimar-me os sentidos. Julgam-me. É verdade que o meu trabalho é pouco exigente e a casa que me possui foi uma prenda dos meus pais. Mas isso não lhes dá o direito de me julgarem. Poderia ser pior. Poderia ser uma pessoa insensível e fria para com os problemas dos outros. Sou uma boa pessoa, e não respondo pelo facto dos meus pais serem ricos. Trabalharam para isso! Ando para o trabalho e vejo os problemas dos outros, dessas pessoas anónimas, dos animais abandonados, dos mendigos e das crianças mal-tratadas. A angústia é frustrante por não poder ajudar todos. Talvez por isso é que muitas pessoas desenvolvem uma camada de gelo à volta delas, para que a amargura de não poder salvar todos não lhes partam os braços de tanto segurar uma esperança. Um mundo melhor? Pessoas melhores? A sociedade e as prioridades particulares do todo já sofreram os enganos e as frustrações. Eu aqui rica, e eles à chuva e ao frio! Os animais torturados sobre a tutela de miudos ignóbeis, filhos de pais idiotas que ao chegar o calor, um mísero mês de sol, mar e férias, voltam as costas aos companheiros de familia como se fossem lixo. Como podem eles fazer isso? Deixam os idoso num lar, os pai e as mães que lhes educaram e fizeram felizes, para os empurrarem para o esquecimento! É tão profunda esta ódiosa ignorância que me apetece cortar os pulsos. E as pessoas continuam a julgar.

Vivo numa casa, com a minha mulher e os meus filhos, um rapaz e uma rapariga. Não penso muito em muitas outras coisas a não ser o sustentar da minha família. Chego a casa e ligo a televisão, fumo um cigarro e vou jantar com a minha mulher e os meninos. Meto os miudos na cama, leio um história para eles. Beijo a minha mulher e vou-me deitar. Acordo com o despertador, tomo banho, visto o fato e em meia hora estou atrás de um balcão a atender pessoas. Penso em ir fumar um cigarro assim que passam das dez. Ao fumá-lo penso na minha família, no que poderá ser melhor para eles. E então regresso ao trabalho. Ainda nem são dez e meia e já me doíem os músculos faciais dos sorrisos obrigatórios.

Esta vida de professor tem as suas vantagens, quando se é docente nas Universidades. O meu caso é diferente. Sou educador do primeiro Ciclo, jovem formador destas mentes fetais, ainda verdes demais para serem os nossos líderes, os nossos patrões, os nossos técnicos, os nossos empregados de caixa. Ser educador, professor, agricultor das verdes mentes é em si uma vantagem. Posso faze-los respeitar a ordem natural das coisas, e entender o preciosismo de uma boa educação. Ainda no outro dia riscaram-me o carro, estes vandâlos. Deve ter sido o míudo vesgo do 3º D. Chamei-o à atenção e envergonhou-se em frente à turma toda. Estes miudos são vingativos! O perigo que representam estes cérebros excede a sua imaturidade. E esta é a minha vantagem. Posso evitar as maldades futuras que possam vir a acontecer aos outros. A responsabilidade é grande, e não pode ser destronada pelo medo e a indiferença.

Sou um bêbedo. Um coitado. Sou um renegado do sucesso e um navegador dos mares amarelos das terras alcólicas. Quero pisar as areias da sobriedade, mas como os navegadores, sou para sempre atraído ao mar profundo. A culpa é dos outros! A culpa é dos outros que não quiseram saber de mim, da minha ruína, da minha família e do meu filho, que passa por mim e faz que não me vê. A culpa é dele! Maldito rapaz. Se não quer ser visto comigo em frente aos amigos, secalhar não o devia ter concebido. P’ró diabo com eles todos. “Ó jovem, é mais um Bagaçinho.”

Vivo num centro urbano no meio do nada. Vou-me safando com um part-time. Tirei a Licenciatura em Arqueologia, e trabalho num achado encontrado à duas semanas. Adoro este trabalho. Consigo analisar tudo pelo qual o ser Humano já passou. E sei isso através dos vestígios ritualistas que compunham uma dada comunidade. Conheço o ser Humano através das suas mecanizações.

Tomás J. A. Pinto

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