segunda-feira, 26 de março de 2007

O saco

O fumo passa pelos olhos de um velho que tosse convulsivamente, apesar de continuar a enfiar o cigarro pela garganta abaixo. As adagas de fumo provenientes do dito mal entram-me pelos musculos e pelos nervos, arrepiando os cabelos da nuca. Por minha vez acendo um cigarro, enquanto espero pela empregada mirrada e míope, que de certeza me vai trazer o café queimado e o copo de água canalizada, que pela milésima vez escorre para o estômago furando buracos no muco esverdeado, guerreiro defensor morto pelas bactérias virais. O nariz funga e escorre, tão conscientemente que me apercebo e tiro um guardanapo de papel daqueles cilindros publicitários tão afáveis. A simpatia reina neste café duma esquina pouco recomendada.

Não estou aqui porque quero, ainda por cima com uma constipação a crescer nas minhas entranhas. Espero o homem do lixo, aquele sacana que me levou um saco que encostei à parede, ignorando o facto dele estar de braços dados a um contentor rodeado de comparsas. E então o homem levou e só quando o camião abalou é que reparei no rapto. Estava tão ocupado a fazer não-sei-o-quê que permiti o maléovolo avanço do lixeiro. Felizmente fui deligente e consegui contactar a firma, especializada em remoção dos dejectos rotineiros produzidos pelos restantes mamíferos, que prontamente comunicou ao camião furtivo o sucedido antes de chegar à lixeira. Escusado é dizer a trabalheira que os pobres coitados tiveram para encontrar o meu saco, cuidadosamente e árduamente por mim descrito ao telefone, aludindo às questões de um rapaz rouco e pouco iluminado. O trabalho de um homem do lixo é penoso, e não menos honrado, pois poucos o fariam enquanto homens menores se gabam do seu salário everestiano, apesar de eles apenas ficarem pelo primeiro posto de controlo.

Lá chegou enfim o homem. Curiosamente adornado (nunca tinha visto um lixeiro enquanto o sol queima) chegou-se ao pé de mim depois do meu dedo ter partido na prateleira que surrateiramente se pôs atrás de mim, graças à minha tentativa de o chamar e apressadamente acabar com o triste assunto. Entregou-me o saco, algo sujo e envolvido num odor de que não faço ideia como chegou lá. Felizmente tudo se esclareceu e agradecendo o seu gesto e dos seus colegas, fiz com que a empregada mirrada parásse de cuscar e nos trouxesse dois licores de fruta, ao qual o homem rude mas elegante fez uma cara de contentamento caloroso. Despedi-me com honras e saltei para o passeio. A minha felicidade era tanta que quase não reparei na pancada solta que me tocou no crânio ao virar da esquina e me apagou por completo. Tinham-me levado o saco.

Tomás J. A. Pinto

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