Eu andava pelos corredores, numa tentativa de desanuviar os pensamentos lúgubres da passagem de mais um ano enfiado num escritório pouco arrumado e atulhado de papéis. O meu espírito partiu com o ano velho.
Aqui temos a Humanidade no ínicio do século, neste magnífico ano de 1901, prestes a alcançar o seu mais alto potencial, cheio de novidades e engenhocas, e eu enfiado no escritório a arquivar, anotar, escrever e publicar tudo que o ser humano fez, faz e pode vir a fazer. As Letras! Essas sim vão deixar de importar, do modo como as coisas evoluem. Maravilhas da Ciência, a alta dignatária da imaginação humana, que move a sua sombra sobre os Velhos. Classicismo! Quem o quer? Romântismo? Se não cura a Gota e a Febre, então não quero, muito obrigado.
Está um dia espantosamente normal nas ruas desta minha Londres, capital do mau tempo, com raízes na História do mundo. As pessoas andam apressadamente, num ritmo frenético, como óleos de maquinarias. Tanta pressa e não chegam a lado nenhum. Isto quer é engenho, dinâmica, velocidade e segurança! Realmente, para que servem aqueles papeis pintados com tinta, relembrando os hieróglifos egípcios que tantam fascinam mas não esclarecem. Todos são analfabetos! Para quê os livros, artigos e enciclopédias, a não ser para as lareiras, pois a lenha está cara! Ah, aí está uma função para os papeis. Em breve inventarão uma maneira de fazer calor sem fogo, e os autores tornar-se-ão inúteis. Que século espantoso que se aproxima!
Mais um dia no escritório, e os papéis cortam-me os olhos só de olhar para eles. Eles ameaçam-me. Sabem do meu ódio secreto, uma repulsa que só um notário, editor ou escritor podem possuir. Que dor meu Deus! Mas força! Os papéis pagam-me as contas.
Estava eu em mais uma divagação fatal quando sou atacado vísceralmente por um sentimento repentino de alegria. Mas não uma alegria jovial, antes uma vinda de um sentido de segurança. Penso, não, tenho a certeza de que os meus filhos verão neste século uma união humana como nunca antes. As maquinizações unirão os seres operadores e a harmonia velará por todos, mantendo longe a fome, a doença, a guerra, o sofrimento, a desonestidade. Que belo século será este perfeito século XX.
Assim rir-me-ei de todos os autores que sempre existiram e que virão a existir. Tolos! Que deu a Homero e Platão, Aristóteles e S. Jerónimo, Camões e Shakespear, e ainda Eramus, para marcarem as características, os feitos, as lutas e as belas criações humanas em papel, que o tempo se encarrega de comer. As Letras são passageiras. A Ciência perdura, e não teremos que sofrer mais, pois nós evoluímos, e não cometeremos as atrocidades do passado.
Tomás J. A. Pinto
· N. A.: Isto é um exercício de escrita, e não espelha as temáticas e convicções que prezo. As Artes e as Letras têm que ser defendidas para não serem dominadas pela ciência, tão boa como tem vindo a ser (e às vezes nem por isso). O protagonista claramente não entendeu a natureza repetitiva da História humana.
quarta-feira, 28 de março de 2007
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