segunda-feira, 26 de março de 2007

Birra de menino

“Não me venham cá com estas merdas que eu cá sei o que me escondem o que me devem” berrava o jovem encarregado do armazenamento de material, o Sr. Martins, o Bernardo (coitado devia ter pais que pouco gostavam dele), visívelmente afectado pelo despedimento e fraca compensação. Segredos possuía ele sobre a direcção, como fazia crer pela gritaria, mas não os revelava prontamente, apesar do seu estado birrento. Sinceramente, o pessoal cá do escritório secundário à algum tempo que se mantinha de sobressalto. Rumores de uma vaga de despedimentos. Obviamente o Sr. Martins, homem novo, mas enfezado e pálido, tinha sido a primeira baixa, mas talvez o seu predicamento fosse resultado de uma descoberta escândalosa acerca da direcção. Eles dizem pouco, mas sabem ordenar, coisa que patrões como o Excelentíssimo Sr. Marques tinham que tirar um curso especializado e conceituado além-fronteiras.

Foi assim que começou o que ficou conhecido como “A Loucura de Bernardo Martins: Massacre no Escritório”, amplamente noticiado pelos media. Até houve quem jurasse que o Bernardo já fosse algo instável de nascença (resultado da tutela dos pais talvez), mas isso eram só os oportunistas e mirones que ansiavam aparecer no rectângulo mágico. Eu sabia melhor. Foi o desdém e a pouca fé nas ameaças de um homem franzido e pálido que despertou uma raiva clássica no Sr. Bernardo Martins, digna de um troiano defendendo a sua parcela de uma Tróia afundada. Heitor estaria orgulhoso de uma raiva e honra justificadas como as do Sr. Martins.

Voltou pouco antes das sete, altura em que todos nós nos encontrávamos fatigados e mórbidamente desejantes de abandonar o local de escravatura compensada, e trazia consigo uma foiçe (“pareçe um comunista” pensei) e um martelo (“é comunista de certeza!). Sentimos todos, inclusive os directores e o patrão (que por algum acaso estranho do destino permaneceram até à hora de fecho, pois saíam sempre pelas sombras das quatro horas) uma ligeira dormência, e entramos num sono leve mas possessivo. Bernardo amarrou-nos todos às cadeiras Ikeaistas e juntou-nos num círculo, de maneira a gozarmos o espetáculo. Começou com os estagiários (coitados!), depois com os arquivistas (pobres diabos!), seguindo para os notistas e escriturários (desgraçados!), e finalmente começou a rolar os olhos serenos para as caras petrificadas da direcção. Este esquema hierárquico foi, claramente, concebido para que o Sr.Marques, já não muito excelente, observasse o destino que tinha distribuído aos seus empregados, para que acordasse todas as manhãs para as caras desfeitas, rasgadas e esmagadas dos seus subalternos diante dos seus olhos, sentindo o suor dedicado e o sangue delicado nas suas mãos para o resto da sua vida. Isto era a compensação do Sr. Martins, de olhos serenos, afundados na carne negra das suas olheiras. Permaneceu largos minutos em frente ao patrão sovina, queimando o seu olhar maníacamente calmo no terror do olhar do seu superior. E matou-se com um sorriso angélico nos lábios. O patrão viveu, embora encontrasse a paz num belíssimo exemplar de Bourbon americano e um frasco de comprimidos. Eu infelizmente pertencia à classe dos escriturários, e as pessoas ainda choram por mim.

Tomás J. A. Pinto

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