segunda-feira, 26 de março de 2007

A missão

O gato luta. O gato mata. O gato corre e caí entre as trincheiras elameadas. O gato confia na espingarda M1 Garand que lhe é confiada, poupando a munição para quando mais precisa. Deixa o trabalho sujo para as garras e os dentes. O gato não pensa na Grande Guerra, não pensa na luta entre a sua raça e a antagonizante raça dos canídeos. O gato só sabe que tem que chegar a um certo ponto sem ser detectado, para depois enfiar dois tiros nos crâneos caninos. Este, claro, é um gato sniper. Soldado da infantaria, o seu lustruoso pêlo preto chamou logo a atenção do seu sargento formador. Indicou-o logo para a Companhia F, um esquadrão de assassinos silenciosos, que depressa lhe moldou na máquina de matar que é hoje em dia, o mesmo que corre na lama sangrenta, coberto dos corpos dos seus camaradas. Garras, pêlo, bigodes e orelhas espalhadas pelas explosões do napalm, arma cobarde inventada pelos cães, envolvem o seu pêlo. Alguns puderão futuramente discutir o que é cobarde ou não numa guerra. Mas para este gato matar não é uma coisa levada levemente, ao toque de um botão. É algo honroso, pelo qual se tem que passar inúmeras dificuldades e perigos mortíferos.

Encontrou-se no local.

O local da chacina. Toda a sua equipa foi desfeita em pedaçinhos. Nunca mais iria comer comida enlatada, daquela dada pelos fracos humanos, facilmente dominados. Realmente, foram os humanos a causa da Grande Guerra. Foi a luta pelo domínio senhorial sobre os escravos humanos que levou o Primeiro Cão a insultar o Primeiro Gato, e por aí adiante. Os passos para a guerra são sempre pequenos, mas deixam as suas pégadas.

Toda a sua equipa estava morta. O gato estava sozinho. Tinha acabado de matar os guardas de um posto de comando. A sua missão era roubar os documentos secretos, localizadores de agentes infiltrados. Gatos sujeitos a lavagens cerebrais através da tortura. “Esses filhos da puta! Que desfelínicidade!” – pensou o gato sniper. “Vão pagar p’las orelhas”. Os dois Dobermans e o Pastor Alemão já se encontravam mortos, mas ainda restava os outros dentro do posto, e já não tinha munições. Teria que usar as garras, afiadas no tronco de uma amendoeira. “Não devia ter disparado aqueles dois tiros antes de chegar cá. Merda!”. Referia-se pois a um incidente à cerca de dois quilómetros atrás, quando encontrou dois cães a tentarem violar um gata, animal corajoso que se voluntariou para lutar na Grande Guerra. Teve que os matar, mas sem revelar a sua localização. No momento esboçou um sorriso, mas agora remoía em dúvidas. Teria que usar as garras e entrar a matar. Jogou a arma fora e aproximou-se sorrateiramente do posto de comando. Viu 4 cães, dois Rottweilers matulões, um Beagle e um Borzoi. Era uma comitiva de altas patentes com os dois guarda-costas. O que faziam ali o gato não sabia, mas também não lhe interessava, e jogando uma bomba de fumo para dentro do posto entrou ferozmente, pronto para a chacina. Em menos de nada o gato cumpriu a sua missão, com uma arte marcial severa, aprendida na animosidade da Companhia F. Estavam todos mortos, e os documentos capturados. Eis então que um dos Rotts, num último esforço antes de morrer, disparou dois tiros, falhando um, enquanto que o outro acertava na perna do gato. Deitado no chão, o gato depressa fez um garrote e fugiu coxeando. “O gato não pensa na Grande Guerra. O gato luta e mata. O gato corre!” pensava para si, as palavras ecoando a um volume estrondoso na sua cabeça, apenas abafado pelo batimento cardíaco pululante. Conseguiu chegar a uma clareira no meio do bosque. Território inimigo. O alerta tinha sido dado acerca do roubo, e não tardaria até todo bosque ser patrulhado pelos canídeos. Tinha que sair dali o mais depressa possível. Mas não conseguiu. Dentro de uma hora os canídeos tinham encercado o gato, mas não antes deste comunicar ao Comando Central via rádio os elementos constítuintes do grupo infiltrado, os Judas forçados.

Morreu o gato, mas morreu não temendo a morte, pois sabia que o destino de um assassino é uma morte em batalha. Tinha cumprido a sua missão, mas preocupava-o o outro plano existêncial. O Grande Animal, desapontado com as suas acções, poderia faze-lo voltar como um cão. Nem tudo na guerra é desculpável, e o gato era um crente, assim como um assassino. A única coisa que lhe dava um certo conforto era o salvamento da jovem gata. “Será que se tinha safado?”. Foi o único acto de bondade que tinha praticado naquela miserável guerra, colocado no seu caminho para atenuar o desgosto do Grande Animal.

Cinco anos passados e a Grande Guerra tinha terminado. Um memorial foi construído para lembrar as vítimas caídas em combate. Surge uma sombra junto ao monte solene, e colocando uma flor vermelha escura, corria com os olhos os nomes dos guerreiros caídos, interrogando-se qual deles teria sido o seu salvador.

Tomás J. A. Pinto