sexta-feira, 20 de abril de 2007

Avisos

Ia Conrad, que os amigos resentidamente chamavam de John, a passear pelos caminhos tortuosos e mal ordenados de um cenário vegetalista, quando ouviu o vento gritar o seu nome. Qual dos dois não tinha a certeza, mas certamente chamava por ele. Ainda sobriamente tentando perceber, apercebeu-se de que devia parecer um louco alcoolizado ao virar-se para todos os lados, na tentativa de ver de onde saia o som que o rodava como um louco. A boca donde saira aquela voz, que passava pelas árvores e arbustros, receberia uma fúria certa. Os pássaros não ajudavam. Cansado daquela confusão, em que os seus pés pareciam ganhar vida própria, decidiu sentar-se em cima de um rochedo da cor de âmbar. Puxou do cachimbo e encheu-o, fingindo não ouvir o vento que chamava por si. No meio do fumo viu que o vento baixara, e a voz desaparecera, mas não podia deixar de sentir que estava atrasado para qualquer coisa. Empurrando o pensamento para o fundo da sua cavidade cranial, explorou a hipótese de entender se aquela voz era sua amiga. Conseguiu isto ao rebuscar o momento em que foi convocado, lembrando-se do nome que lhe fora atribuído pelo vento. Seria Conrad (para os demais)? Ou John (para os amigos)? Não tinha a certeza. A verdade era que não gostava muito do nome dado pelos amigos, em forma de rancor antigo, por ter um nome mais bonito que os deles. Conrad era sinónimo de muito trabalho para pronunciar. Ficaria John. Os amigos claramente não observaram a mudança que certas denominações fazem às pessoas. Conrad vivera até então com um método de observação e de interacção muito distintos. A sua apresentação era relativizada de acordo com o que queria deixar entrar na sua vida. Para os demais era Conrad, e para os amigos John. Assim as coisas ficavam bem divididas, e as confusões evitadas. Mas agora esta última convenção não estava a ser respeitada. A confusão entrara na floresta, e o refúgio espiritual de um homem dividido em dois deixou de o proteger. Conrad, que muitas vezes estudara a forma das árvores (as folhas, o tronco, a altura) calculou que estas já não se pareciam com paredes. As paredes isoladoras do resto. A voz penetrara, e a estrondosidade estremecera-o, desde as pernas arcadas até ao crânio, onde agora estava o pensamento amedrontado do atraso, a cair da prateleira.

Batendo com o cachimbo no rochedo cor de âmbar para o limpar, continuando a sentir os pés confusos, decidiu pôr-se a andar. Logo, o vento levantou-se, e a voz que gritava o seu nome parecia agora mais assustadora. Queria fazer-lhe mal, e certamente o embruxaria para cair numa armadilha pagã, e o seu corpo serviria de exemplo para os jovens. Contariam a história do jovem Conrad John, que não ligando às virtudes cristãs, depressa encontrou o seu fim nas garras demoníacas do paganismo. Continuou a andar, e a voz aproximava-se cada vez mais, ao ritmo que o sol descia pelos vales e as sombras cresciam. Algumas ainda tentaram agarrá-lo, mas eram só umas ramagens de um velho arbustro, com as raízes de fora. Pensou logo em regressar, visto que o seu refúgio mudara hediondamente de cara, olhando-o pelos troncos com olhos malignos, músculos rasgados num sorriso amarelo e castanho, e de voz horrível. Os avisos tinham sido vários, mas Conrad não ligara, e agora a floresta iria-o consumir. Acelerando o passo, tropecava em tudo, e quando mais rápido andava, mas rápido ficava para trás. Os avisos foram muitos, e a voz no vento fora desdenhada. A natureza tem a sua própria natureza, vingativa e inocente.

Acordou sobressaltado com as sombras de ramos velhos projectados na parede. Ainda era de noite, mas não se sentia como se tivesse estado a dormir. Tudo era demasiado fresco, como a terra madrugadora. As memórias do medo. Conrad levantou-se e olhou pela janela para a floresta. O dia e a noite não eram assim tão diferentes, apenas na personalidade, no que se pode ou não fazer. Desdobrando-se, como ele próprio, a natureza tinha as suas sombras, e a sua personalidade. Conrad não sentia medo. Apenas respeito. Sabia que aquilo que se tinha passado fora verdade, e que se fosse para ter medo, estaria morto, a servir de história moral para os mais pequenos.

Tomás J. A. Pinto

Um comentário:

Gracinha disse...

Gostei...

É bom saber de ti! Por onde andas, como andas, que andas a fazer... Estou a gostar de ler o que tu escreves.
Antes de conhecer o teu blog, estive em arrumações e encontrei um caderno velho das aulas de tradução. E lá estava uma folha com uma conversa rabiscada que 'traduzia' bem a nossa atenção naquelas aulas.
Um beijinho com saudades de boas conversas...
Graça