quinta-feira, 26 de abril de 2007

Um machado pela maldade.

O carro passa-me à frente, e depressa, olhando para os lados, atravesso a passadeira. No passeio, um velho carismático e ligeiramente bêbado dirige-me a palavra.

“Desculpa lá aquilo de há pouco. É que distraí-me… Como é que te posso chamar amigo?”

“Tudo menos amigo, ou coisas ofensivas. Sentir-me-ei obrigado a lhe dar uma lição daquelas” digo-lhe. Não estou para estas coisas esta manhã. Já levei o suficiente hoje.

Tinha tido uma noite daquelas, em que o calor nocturno deixa-me nervoso. É um sono inatural. Amorfo. Virei-me para todos os lados, à espera que o barulho da cidade me embala-se. Assim acordaria para mais um dia de suores e maus-cheiros. Odeio o verão na cidade. Agora estou a levar conversa fiada dum estranho. É daquelas pessoas que por mais que se desconfie a conversa conserva um poder atractivo que só anos de experiência e meses de alcoolização permanente podem atribuir. Ás vezes sabemos que é mentira, outras quase acreditamos, mas este velho atraí-me a imaginação como nunca me tinham feito. Há verdade, tragédia e alegria misturadas (como sempre) naquilo que aquela boca babada e lenta me diz.




“Foi com dezassete anos que parti” começo por dizer seriamente ao rapaz. “Num ano em que o circo veio para a cidade. Encantei-me com tudo o que compunha o circo. O trabalho e o modo de vida. Esta cidade odeiava-me. Não sem razão. Em míudo podia ser muito brincalhão, mas sem maldades. Não foi graças às maldades que resolvi partir. Foi graças a elas que consegui partir.”

A memória espeta-me o coração com uma dormência súbita. Continuo normalmente a conversa, mas no fundo sei que a memória é a sensação de culpa que me tem roído ao longo destes anos, daí a necessidade do scotch. “Matei um míudo.” Disparo. O rapaz quase pisca um olho de sobressalto, mole em descrédito.

“Foram as condições que me impuseram. Adorava o circo, estás a ver! E para entrar na vida circense há condições”.

Arroto.

“Com licença. É bom o scotch, e às vezes descuido-me. Mas as minhas sinceras desculpas.”- afianço-lhe verídicamente.

“Estava a dizer…” insiste o rapaz.
“Pois… teria, portanto, de provar o meu valor aos chefes do circo. Contaram-me que estavam desapontados com o seu actual performer de malabares. Acho que tinha sido qualquer coisa do género meter-se com a mulher barbuda. Isso e os constantes atrasos. Teria que matar o míudo, um ano mais velho que eu.”

“Então matou o míudo?”

“Tem que perceber, a vida nesta cidade comia-me vivo. Sabia que nunca chegaria a ser alguém por cá, mas no circo… no circo… saberiam todos o meu nome. O grande Ta…”.

A estrada ensurdece a conversa, e a ambulância que nos passa não deixa o rapaz saber o meu nome. Destino talvez. Eu sei bem como é cruel. Vejo o rapaz a distanciar-se.

“Tem que perceber rapaz...” digo-lhe, meio aos berros. "Esta cidade comer-me-ia vivo". E era verdade o que dizia. “Matei-o com o machado de serviço. Eles trataram do corpo, os chefes. Fui e tornei-me um grande mestre das artes. Mas lá me fui envolver com a maldita mulher das barbas. Acho que todos iamos lá parar. Assim parti, porque sabia que os chefes iriam arranjar uma maneira de se livrarem de mim”. Lembro-me de como no circo era bem alimentado, e estavam sempre pessoas a irem de férias e a serem substituídas.


Esta conversa, que eu disfarçadamente compusera com uma postura incrédula, estava a chegar a um ponto surreal. Eu sabia que era verdade. Instinto talvez. O meu sentido cívico apontou-me apenas uma direcção. O facto de este velho ter morto alguém suscitou em mim uma vontade cruel de pôr o dedo na ferida infectada que era a sua vida, irónica ao ponto de lhe dar mais um pontapé na cara. Chamei a polícia.

Tomás J. A. Pinto

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