terça-feira, 17 de abril de 2007

De vida ou morte

Uma queda sintomológica da cabeça levou-me logo de volta. Que foi aquilo? A minha têmpora esquerda ainda ardia do esquecimento, e a vontade de lembrar ficou por ali. Estava escuro. Muito escuro. E não ouvia nada a não ser o esfregar de carne seca no metal.
Tentei-me mover no escuro e descobrir onde estava, mas algo que me tinha envolvido as mãos fazia um esforço tremendo por me deixar no sítio, como um amante que depois do sexo quer voltar para junto do cheiro familiar, mas que não consegue. A culpa faz coisas insensatas. Mas neste caso, era mesmo impossível. As algemas não me largavam por um instante e a vontade de descobrir onde estava ia levantando-se debaixo da pedra escaldante que era a minha cabeça.
Teria eu feito qualquer coisa para ser catapultado para esta situação? E que situação é esta? As perguntas batem-se de um lado para outro, mas como eu, não se conseguem soltar. As respostas não as encontraria aqui. E a escuridão ainda não se tinha habituado aos meus olhos.
De tempos em tempos conseguia ouvir um sussuro, um sussuro de água a cair a conta-gotas. Dava para calcular rudimentarmente o tamanho do sítio, que não era muito grande, e que também não me confortava. A escuridão revelava o nada, e o esquecimento revelava o pouco. O medo era tal que começei a ouvir um batimento surdo na parede ao lado. É o coração! Entre o pulsar do coração e o cair das gotas, um ritmo surgiu e começei a cantar. Ao menos distraía-me. Podia ser que surgisse alguma resposta, naturalmente, como costuma ser.
Começei por tautear uma canção ignóbil e extremamente irritante, o que deve ter desagradado aos olhos que surgiram, um metro à minha frente. Tinham surgido de relançe, e tomei-os por delírio. Mas a vivacidade deles, o amarelo pálido e duro, exprimindo mil livros num só olhar, deixou-me atemorizado. O que eram aqueles olhos? E como brilhavam eles se não havia luz? O batimento do meu coração já excedia a minha pequena estatura, batendo na parede com as minhas costas, querendo fugir. O único barulho era das gotas, do meu coração, e da salivação permanente, vinda do lado dos olhos.
- “Quem está aí?” perguntei estupidamente, pois aquele olhar não precisava de palavras para saber as intenções. Apenas fitavam, e era o suficiente.
Os berros ensurdecedores não paravam e por momentos pensei ter rebentado com os tímpanos, mas acabei por me controlar e parar de vocalizar a minha histeria desnecessária. Mas gostava tanto daquele ritmo musical e corporal do batimento cardíaco, da dor de cabeça e dos berros, que por pouco não desmaiei. Bem queria. Foi quando notei numa figura ao meu lado, vagamente humana, mas com a forma recortada e mal feita. Deus! Um esqueleto! E com correntes nas mãos! Era este o meu futuro. Era a única resposta que aqueles olhos me dariam.
Acordei suado na cama, com o lençol mergulhado em suor, revelando uma minha falta de higiene em casos extremos. Foi só um sonho, e os barulhos ritmícos da vida corriam ao vento, lá fora. Quanto tempo dormira? Certamente, foi o suficiente para ver o cadáver decomposto da minha mulher ao meu lado, sorrindo naturalmente para mim, como fazia todas as manhãs ao pequeno almoço.
O que fazer? O que fazer? Vão pensar que fui eu! Medo, culpa, planos de fuga, evasão, dissimulação e explicação batiam mais fortes que as perguntas no meu sonho. Foi um sonho, não foi? Claro que foi! Mas não tinha tempo, e a culpa faz coisas insensatas. Mas não fui eu que fiz aquilo! Ou fui? Claro que não!
Saí porta fora, com o olhar pavorado e sereno de um gato nos máximos de um carro. Continuei a andar. Via olhos a olhar para mim de todas as direcções, como se fosse possível ler um grande Culpado de qualquer coisa na minha testa ou numa tabuleta à volta do meu pescoço. Mas aos poucos, eles olhavam, e não olhavam. Eu era indiferente. Muitas vezes via na televisão casos de assassinos e pensava, indiferentemente, “Que sofra na cadeia e morra em dores, o sacana!”. Nunca tinha pensado na complexidade da inocência e da explicação das circunstâncias. Mas por fim, um juíz insolente e um juri inconsciênte revelaria a minha condenação, e voltariam todos jovialmente para junto das famílias, contentes por terem prestado o seu dever cívico. O que é que há de cívico em mandar um homem para a morte? Deve ser natureza humana. Out of sight, out of mind como dizem os ingleses. Mas obviamente, haverá aqueles que têm que sofrer pelo que fizeram, haverá aqueles que querem sofrer pelo que fizeram, e os que nem deviam estar a sofrer pelo que não fizeram. Nesta altura certamente desejaria ter feito aquilo pelo que pagam agora. Saberia melhor, e então a natureza selvagem e dominante, tão bem escondida nas camadas morais, voltaria acima, mostrando o Homem como o animal que é.
Todos estes pensamentos ajudavam-me a me abstrair do meu problema, mas fui obrigado a pedir informações a uns colegas cívicos desconhecidos. Ninguém me respondia. Podia empurrá-los, gritar-lhes aos ouvidos, e nada. O ponto comum era a indiferença. Seria medo? Medo derivado do que tinha feito, ou não feito, estampado no rosto?
Rapido e suavemente, um braço puxou-me para o lado, e sussurando, como gotas de água, praticamente imperceptíveis, disse “Eles não te ouvem.”
- “O quê? Como?” suspirei visceralmente.
- “Não te podem ouvir. Não estás como eles. Jamais voltarás a estar como eles. Estás melhor. Estás morto” respondeu aquela boca estranha e deformada.
Estranhei aquelas palavras, dando a entender com a minha cara enroscada de desconfiança. Mas qualquer coisas batia certo. Não conseguia ver a cara do estranho, mas a voz era a verdade encarnada sobre forma humana. Seria esta a forma da Verdade? De aparência exterior feia, mas de essência pura em factos e emoções claras. Realmente, os homens sempre mascararam a verdade como algo belo, mesmo que os actos em nome das verdades não o fossem. Porque haveria de ser assim? Ou ao contrário? Porque é que tenho que acreditar em tudo o que os homens definem? Agora não interessava.
- “Está bem, estou morto. O que faço?” disse antagónicamente, revelando o meu cépticismo humano. Sou apenas humano. Ah, é verdade, já não sou.
- “Já passaste o teste, agora tens que encontrar o caminho” respondeu.
- “Qual teste?” perguntei.
A essa altura, o estranho deixou transparecer um bocado da sua face, revelando apenas os olhos amarelos. Não dúvidei. Estava morto, e os olhos do meu sonho eram os olhos da Verdade, que vasculhavam a minha alma, avaliando-me. O meu medo no sonho era honesto, e não era uma má pessoa. Estava morto, e tinha estado no limbo. Por alguma razão voltei à minha cama. Será que me tinha enganado no caminho?
E agora? Quem me tinha morto? Porquê? Que faria agora? Estas perguntas assombravam-me como fantasmas da realidade, da vivência. Somos novamente enchidos de ideias pré-concebidas dos homens de que a morte é o refúgio, a salvação, a liberdade dos problemas terrenos, sociais, existênciais, o que fosse! Mas só encontro na morte mais perguntas, e mais problemas. E a minha mulher? Os meus familiares? Porque vivi? Quero respostas, as que não tive hipótese de responder, sequer procurar, enquanto estava vivo. Ao menos agora tenho tempo, e mais nada para fazer. Vou explorar este novo mundo, as novas terras da morte, e encontrar respostas.

Tomás J. A. Pinto

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