quarta-feira, 25 de abril de 2007

Meia de leite

Era uma vez um rapaz chamado Chavo. Chavo pertencia àquela elite especial, formada na sobrevivência labiríntica, dos empregados de mesa. A sua vida não a considerava muito apelativa, mas permitia-lhe pequenos luxos que o afastavam do turbilhão social que o puxavam diáriamente por todos os lados, maquinizando-lhe os sentidos. O espaço comum partilhado pela multidão anónima e por Chavo era o Café Silhouette, o seu local de emprego. Era uma superfície recuperada de um velho café popular, sendo mais uma phoenix renascida das cinzas imobiliárias. Era agora in.

Todos os dias, entrando às nove da manhã, deparava-se com as mesmas caras, que, estranhamente, eram sempre diferentes. Rugas, sinais, cabelos loiros, castanhos claros, castanhos escuros, pretos, bigodes, barbas, óculos, chapéus, bengalas, malas. Estas eram as coisas em que Chavo reparava, e pelas quais organizava o seu trabalho. Não era preciso saber mais nada para funcionar e humildemente servir. Ouve por altos as conversas dos clientes, vendo traços comuns de pensamentos colectivos, aproveitando as oportunidades concedidas para auxiliar num debate ou questão trivial, procurando sempre humildemente servir.

- “São Setenta Cêntimos se faz favor.” Indica uma colega a um cliente novo ao estabelecimento.

- “Setenta Cêntimos por um café ?! O que é que me quer fazer, levar à miséria?” retorquiu o cliente, levantando a poeira de um ar snob, apoiado pela esposa, de olhar indignado. “Não se importa de gastar uma pipa de massa em sapatos e renovações anuais da sala de estar, mas por um café levanta logo um escândalo!” pensou a empregada colega de Chavo. Óbviamente que não expressou o seu pensamento de forma selvagem, apenas sorriu e aceitou o dinheiro. Sobrevivência.

Agora Chavo, que tinha parado um momento para observar a reacção da colega, apercebeu-se de uma sombra a crescer ameaçadoramente atrás de si, pondo a mão no seu ombro.

- “Então Chavo-san, como vai o teu dia?” disse a sombra.

Era o Sr. Komoroshi, um gentleman japonês que tinha o prazer de visitar o Café Silhuete numa base quase diária. Era, portanto, parte dos habituais.

Chavo olhou longamente para o Sr. Komoroshi e finalmente respondeu – “Cá se vai não é? Um dia destes já não me vai encontrar cá para me assustar, aparecendo assim dessa maneira.”. Era, claro, uma mentira. Os planos grandiosos do jovem empregado de mesa assentavam-se eternamente em fundações frágeis, de areia e barro. O café era a única coisa certa na sua vida.

A conversa de café com o Sr. Komoroshi era sempre agradável, embuída de cor nipónica e de cultura oriental. Isso fascinava Chavo, uma cultura diferente da sua. A cultura japonesa era como sonho, um sonho acordado no real, de emoção pura e valores fortes, centrados numa auto-disciplina indestructível. Entre pedidos e contas, limpezas e simpatias, Chavo ouvia avidamente o que Komoroshi dizia. Chamava-lhe afectivamente “o Professor”, ao qual este baixava a cabeça em sinal de agradecimento.

Passado as cinco horas, hora de saída, Chavo arrumou as suas coisas e avançou para casa, um pequeno apartamento, mas alegre e sustentável. Meteu as chaves na porta, mas esta abrindo-se repentinamente escancarou-se e lá de dentro veio uma menina pequena a correr, jogando-se para os braços dele. A figura serena e apelativa da mulher encostada à porta, com um sorriso nos lábios, puxou-o para dentro. Estava em casa, e amanhã seria outro dia, o mesmo dia, mas não a mesma noite.

Tomás J. A. Pinto

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