quarta-feira, 25 de abril de 2007

Resistentes.

A alavanca prende e agita trémulamente, como um bezerro recém-nascido, mandando um projéctil que se assemalhava a um naco de orelha, que alegremente se espalhafata no chão, como um rato oferecido pelo gato ao macho alpha dominante. Aquela máquina infernal causara mais um desaire para o barbeiro.

“Sinceramente, já não se pode cortar o cabelo sem perder uma parte crucial da funcionalidade do corpo humano” - alvejou a vítima, o Dr. Verde, sempre num tom cordial.

“Sinceramente…” - murmurou-se pela barbearia.

“Oiça lá ó Sr. Barbeiro, porque é que persiste nesta ideia de manter a tecnologia ultrapassada, que, potencialmente, é uma armadilha da Morte.” – questiona uma voz amiga, apoiada por outras.

“A morte nem sempre é uma coisa má…” – oferece o barbeiro, mas a sua voz é mergulhada nos murmúrios cíclicos dos ocupantes do estabelecimento.

Realmente, a vontade de mandar a cadeira antiga para o lixo já fora o suficiente para diversas e divertidas ameaças da parte do barbeiro, de chave-de-fendas na mão venenosa. Mas esta cadeira era um símbolo trágico, como o último sobrevivente de uma guerra cruel, morrendo de velhiçe, ignorado. Era precisamente um símbolo pessoal e uma testemunha do passado, conselheiro de alturas em que o mundo fora da barbearia mais se parecia com Urano.

“Não me desfazerei dela.” - avançou o barbeiro, tiranicamente.

“Mas…” – responde o coro.

“Está dito!” – silenciou o barbeiro. “Aquela peça de engenharia sublime ficará aqui. Apesar de causar os desastres ocasionais, os senhores perdoar-me-ão carinhosamente, entenderei.”

Silêncio. Os sussuros das tesouras e das vassouras ocupam novamente as quatro paredes antigas da barbearia, o pedaço de orelha ensanguentado permanecendo no chão. Afinal, não se mete com um homem perito no manuseamento da navalha.

Tomás J. A. Pinto

Um comentário:

Ainat disse...

Adoro os fins das tuas histórias/estórias. Não só do fim, de tudo o resto. Mas os fins deixam-me sempre com um sorriso por vezes macabro nos lábios.
Desculpa não te dar uma crítica construtiva, mas para os teus textos são simplesmente deliciosos, e acho sinceramente que mereciam estar um livro de short stories. Em que uma pessoa iria ler e sorrir no fim, um sorriso de algo que nos supreendeu.

(Vai pensando tambem no argumento para a bd que o teu irmão anda cá com umas ganas de o desenhar...) :)