For Fil, Zé, Joana, Tânia e David.
Original picture by Tânia, Sines 07.
Sinto-me rodeado de pessoas. Talvez seja verdade, e as sombras carnavalescas que me rodeiam são estátuas vivas de carne, sem sentimento ou propósito, penduradas como carcaças de animais mortos, expostos no talho a uma terça-feira. Estão à espera que alguém os diga o que fazer, o que ser, quando respirar, e como. Apetece-me gritá-los. “Andem. Sejam, seus idiotas!”. Mas não consigo. As palavras não me saiem da boca. Não porque não queira. É que os meus lábios estão fechados sobre dentes serrados. Fui feito assim.
Um pombo senta-se no meu obro, e excrementa-o com os resíduos gástricos do seu pequeno almoço. Não haverá de ser a última vez.
A praça encontra-se menos agitada que o normal, mas as pessoas ainda não conseguiram largar o hábito dos passos altos e violentos. São tantas, e tantas. Eu permaneço, imóvel, rodeado de almas. Ocas, ocupadas, sãs, e nem por isso. O velho continua sentado no banco velho, olhos lacrimejados e vermelhos. Um mar de gente que não lhe lembra outros tempos. Os prédios, edifícios e fachadas são a sua companhia. Permaneçem. Permaneçem inalteradas. Uma breve vasculhadela à nostalgia pessoal e regressa à realidade. Um olhar permanente, leve e tedioso. A cara apoiada numa mão trémula, sem carne. Carne comida pelos dias. Antropofagia cruel. O que devia importar não resite, descartado.
Um rapaz olha o velho e pergunta-se se será assim, e eu verei a sua carne a ser comida pelos dias. Verei um rapaz a olhar para ele, a perguntar se será assim.
Eu permaneço e observo. Sou a testemunha imortal do plano inconstante. Das multidões. De onde as pessoas vão para existir, afirmar o seu grito presencial, e onde se sentem mais sozinhas, regressando com o velho sol a descer, numa luminosidade que gaba o seu lugar no universo. Central. Algo que eles não são.
Eu sou o sol do meu universo. Central. Eu sou a testemunha das multidões. Eu sou a estátua do meu universo. Sou a estátua de bronze decorativa. Permaneço, sem conseguir gritar de lábios fechados e dentes serrados de pombo ao ombro “Andem. Sejam, seus idiotas”.
“Cala-te ignorante, e põe as mãos à obra. És um molengas, como se viu pela perspicácia que demonstras-te ao fugir do assunto e da obra que temos pela frente. Repara que falaste no tempo futuro. Serás… mas não és. És um incapaz. Mãos à obra.”
“Verifique, caro executante de obras perras e difíceis, que estas minhas mãos transbordam de bolhas, e com o risco que corro em levar com um jacto de pus no olho, poderei futuramente reclamar um prémio de injúria.”
“Cala-te!”
“A ideia fica assente portanto.”
Este meu chefe, enfim, é homem para inimagináveis besteiras e insuficiências verbais. Eu estou certo de que uma alma como a minha pertence mais ao século das grandes obras humanas e de divinas descobertas de engenharia. Não arrisco ao dizer que seria um génio, um génio que simplesmente foge ao tempo dos génios mal compreendidos e sofredores. Seria um aristocráta, mas seria um snob consciente do trabalho árduo dos operários, serventes e criadas, e por isso não os chatearia muito, apenas o necessário para fazer com que as coisas fossem executadas. Aqui o meu superior pensa que sou maluco, mas noutro século ele seria o único homem capaz de lavar a minha sanita e pouco mais.
“Não te vejo a trabalhar.”
“Com certeza meu caro chefe executante das simples tarefas…”
“O quê! Chamaste-me simples?”
“Tudo num bom sentido é óbvio. Os complicados são complicados, e as pessoas que retêm um certa simplicidade são as mais felizes, não concorda?”
“Humpf… Talvez tenhas razão. Mãos à obra.”
“Mas como à pouco estava a dizer, antes de ser simplesmente interrompido, estava só a executar mentalmente a organização do trabalho, antes de passar ao trabalho própriamente dito.”
“Cheira-me a esturro, e se não começas a meter óleo na dobradiça na porta do carro do patrão vais ver o que é bom para a tosse. Pode ser que te passe essa eloquência.”
“Mas meu caro, esta minha eloquência define-me. É parte do que sou, e representa o meu brilhante, embora pobre, carácter. Se quer saber, dedico-me a todas as áreas do conhecimento artístico e ciêntifico.”
“Não quero saber. Trabalha!”
“Sabe, neste ramo convém saber de tudo um pouco, e as capacidades de interacção laboral são do maior valor.”
“Aí está, laboral. Onde está a tua actividade laboral?”
“Com o chefe sempre a interromper o meu fluxo cerebral e exercício social, sem mencionar o dispêndio no exerciçio das funções gramaticais, não consigo trabalhar.”
“Sinceramente, já estás a passar das marcas seu idiota. Eu aqui quase a rebentar uma artéria para pôr a mexer esses teus ossos, e tu ainda tentas dar-me a volta? Dás-me cabo dos nervos! É agora, deixaste-me sem paciência. Vais levar…”
Foi no momento em que o meu caro colega executante de matérias do âmbito físico e penoso tentou levar a sua mão fechada numa forma de escultura abstracta à minha cara, de compleição fina e sensível, que o patrão chegou. O patrão era um alto dignatário do governo, com casas em tudo que era país civilizado, como se quer. Possuía servos, criados e empregados. Uma vasta gama de atletas fine-tuned, que mantinha sempre às suas ordens, como era o meu caso e o do meu superior violento. Reparei que o patrão, ao chegar, se estava a dirigir para o que lhe parecia como o ínicio de uma contenda de proporções violentas, que decorreria durante o horário de trabalho. Eramos nós pois claro. O patrão arrastou-se imediatamente para o local do nosso trabalho, trabalho esse agora transfigurado inocentemente numa disputa.
“O que se passa aqui? O que vem a ser isto… esta vergonha na minha casa?”
O meu superior bem tentou explicar, mas o patrão parecia não querer saber. Bastou apenas a observação da mão abstracta a dirigir-se para a minha fina e sensível cara para formular uma opinião, e o patrão raramente muda o cartuxo cerebral, sendo difícil mudar-lhe as ideias.
“Patr.. Patrão, ex… excelentíssimo senhor, deixe-me explicar.”
“Não há nada para explicar. O senhor sabe as regras. Está despedido.”
Entre os berros de revolta do meu caro superior, as expulsões e os juramentos acerca da minha morte, que me esperaria num beco escuro, o patrão prontamente seguiu para outros desígnios, o eterno escravo das agendas. Evitarei becos escuros então.
Ora, é o que afirmo. Se eu tivesse nascido noutro tempo, este tipo de incidentes nunca seriam capazes de ganhar forma, visto que seria um snob respeitador do trabalho servil. Seria mais brando no meu caro colega executante. Apenas uma leva chicoteada pelas costas. Um pequeno correctivo. Enfim, regresso energéticamente ao trabalho.
“Ora vamos lá tratar de ti minha maçadora dobradiça, maravilha de engenharia. Já causaste bastantes incómodos. Ora, mas nem chias…”
Tomás J. A. Pinto
Com um cansaço absoluto da mente, demente ao ponto de virar as costas à lucidez do dia matinal, verteu lágrimas de alegria calma ao perceber o sentido das noções utópicas do fundamento fraco de liberdade e convivência. Não podendo realmente sentir alegria, nem calma nem agitada, as lágrimas caíram à terra seca, criando rachas geométricamente estruturadas. Olhando para as cavernosas cavidades da terra, e admirando a sua organização, jogou-se para dentro na hipótese de bater com a cabeça ou com o ombro em alguma coisa afiada. Raios fugitivos e sombras da luz respicaram-lhe os olhos ao longo da descida, e os espelhos que espelhavam as luzes criavam formas intrínsecas e complexas, dignas de choro. Explorava a descida, e sentia-se a subir. Alguma emoção estrangeira ao seu organismo acabava de chocar com os seus músculos tensos, dilatando-os. A calma e o clamor de emoções criaram um fluxo de pânico. Sabia que a aterragem iria doer, por isso, para se abstrair, manteve-se a observar minuciosamente os reflexos da luz, que criavam túneis e grutas escondidas pelas sombras. Parecia-lhe que cada vez que encontrava uma caverna ou um túnel novo encontrava outros de seguida, e passaria para a observação sequencial deles, esqueçendo os outros, e assim consequetivamente. Cansado, quis subir, mas apercebeu-se que ainda estava a descer. Via, clara como o dia, uma lágrima do tamanho dele, a cair ao seu lado e ao seu ritmo. A água reflectia-lhe o rosto, distorcido porém. Reflectia ainda as luzes e os espelhos e as cavernas e os túneis. Estavam a cair em direcção ao fim, mas se era para cima, não sabia. Foi súbitamente agarrado por um estalo barulhento, o som de ossos a partir, e, de novo com os pés na terra e ao ar livre, viu a lágrima a aterrar e a alterar a terra seca.
Tomás J. A. Pinto
O carro passa-me à frente, e depressa, olhando para os lados, atravesso a passadeira. No passeio, um velho carismático e ligeiramente bêbado dirige-me a palavra.
“Desculpa lá aquilo de há pouco. É que distraí-me… Como é que te posso chamar amigo?”
“Tudo menos amigo, ou coisas ofensivas. Sentir-me-ei obrigado a lhe dar uma lição daquelas” digo-lhe. Não estou para estas coisas esta manhã. Já levei o suficiente hoje.
Tinha tido uma noite daquelas, em que o calor nocturno deixa-me nervoso. É um sono inatural. Amorfo. Virei-me para todos os lados, à espera que o barulho da cidade me embala-se. Assim acordaria para mais um dia de suores e maus-cheiros. Odeio o verão na cidade. Agora estou a levar conversa fiada dum estranho. É daquelas pessoas que por mais que se desconfie a conversa conserva um poder atractivo que só anos de experiência e meses de alcoolização permanente podem atribuir. Ás vezes sabemos que é mentira, outras quase acreditamos, mas este velho atraí-me a imaginação como nunca me tinham feito. Há verdade, tragédia e alegria misturadas (como sempre) naquilo que aquela boca babada e lenta me diz.
“Foi com dezassete anos que parti” começo por dizer seriamente ao rapaz. “Num ano em que o circo veio para a cidade. Encantei-me com tudo o que compunha o circo. O trabalho e o modo de vida. Esta cidade odeiava-me. Não sem razão. Em míudo podia ser muito brincalhão, mas sem maldades. Não foi graças às maldades que resolvi partir. Foi graças a elas que consegui partir.”
A memória espeta-me o coração com uma dormência súbita. Continuo normalmente a conversa, mas no fundo sei que a memória é a sensação de culpa que me tem roído ao longo destes anos, daí a necessidade do scotch. “Matei um míudo.” Disparo. O rapaz quase pisca um olho de sobressalto, mole em descrédito.
“Foram as condições que me impuseram. Adorava o circo, estás a ver! E para entrar na vida circense há condições”.
Arroto.
“Com licença. É bom o scotch, e às vezes descuido-me. Mas as minhas sinceras desculpas.”- afianço-lhe verídicamente.
“Estava a dizer…” insiste o rapaz.
“Pois… teria, portanto, de provar o meu valor aos chefes do circo. Contaram-me que estavam desapontados com o seu actual performer de malabares. Acho que tinha sido qualquer coisa do género meter-se com a mulher barbuda. Isso e os constantes atrasos. Teria que matar o míudo, um ano mais velho que eu.”
“Então matou o míudo?”
“Tem que perceber, a vida nesta cidade comia-me vivo. Sabia que nunca chegaria a ser alguém por cá, mas no circo… no circo… saberiam todos o meu nome. O grande Ta…”.
A estrada ensurdece a conversa, e a ambulância que nos passa não deixa o rapaz saber o meu nome. Destino talvez. Eu sei bem como é cruel. Vejo o rapaz a distanciar-se.
“Tem que perceber rapaz...” digo-lhe, meio aos berros. "Esta cidade comer-me-ia vivo". E era verdade o que dizia. “Matei-o com o machado de serviço. Eles trataram do corpo, os chefes. Fui e tornei-me um grande mestre das artes. Mas lá me fui envolver com a maldita mulher das barbas. Acho que todos iamos lá parar. Assim parti, porque sabia que os chefes iriam arranjar uma maneira de se livrarem de mim”. Lembro-me de como no circo era bem alimentado, e estavam sempre pessoas a irem de férias e a serem substituídas.
Esta conversa, que eu disfarçadamente compusera com uma postura incrédula, estava a chegar a um ponto surreal. Eu sabia que era verdade. Instinto talvez. O meu sentido cívico apontou-me apenas uma direcção. O facto de este velho ter morto alguém suscitou em mim uma vontade cruel de pôr o dedo na ferida infectada que era a sua vida, irónica ao ponto de lhe dar mais um pontapé na cara. Chamei a polícia.
Tomás J. A. Pinto
A alavanca prende e agita trémulamente, como um bezerro recém-nascido, mandando um projéctil que se assemalhava a um naco de orelha, que alegremente se espalhafata no chão, como um rato oferecido pelo gato ao macho alpha dominante. Aquela máquina infernal causara mais um desaire para o barbeiro.
“Sinceramente, já não se pode cortar o cabelo sem perder uma parte crucial da funcionalidade do corpo humano” - alvejou a vítima, o Dr. Verde, sempre num tom cordial.
“Sinceramente…” - murmurou-se pela barbearia.
“Oiça lá ó Sr. Barbeiro, porque é que persiste nesta ideia de manter a tecnologia ultrapassada, que, potencialmente, é uma armadilha da Morte.” – questiona uma voz amiga, apoiada por outras.
“A morte nem sempre é uma coisa má…” – oferece o barbeiro, mas a sua voz é mergulhada nos murmúrios cíclicos dos ocupantes do estabelecimento.
Realmente, a vontade de mandar a cadeira antiga para o lixo já fora o suficiente para diversas e divertidas ameaças da parte do barbeiro, de chave-de-fendas na mão venenosa. Mas esta cadeira era um símbolo trágico, como o último sobrevivente de uma guerra cruel, morrendo de velhiçe, ignorado. Era precisamente um símbolo pessoal e uma testemunha do passado, conselheiro de alturas em que o mundo fora da barbearia mais se parecia com Urano.
“Não me desfazerei dela.” - avançou o barbeiro, tiranicamente.
“Mas…” – responde o coro.
“Está dito!” – silenciou o barbeiro. “Aquela peça de engenharia sublime ficará aqui. Apesar de causar os desastres ocasionais, os senhores perdoar-me-ão carinhosamente, entenderei.”
Silêncio. Os sussuros das tesouras e das vassouras ocupam novamente as quatro paredes antigas da barbearia, o pedaço de orelha ensanguentado permanecendo no chão. Afinal, não se mete com um homem perito no manuseamento da navalha.
Tomás J. A. Pinto
De noite o cheiro a alcatrão aquecido pelo sol durante o dia oferece-me um indício primaveradoresco. O cheiro a relva cortada e terra molhada brinda-me de memórias infantis.
Já imaginaram, nos vossos pensamentos passageiros e curiosos (que embora práticamente em nada resultam, deixam a marca de uma mente flexível e treinada) como seriam outros tempos, mas através da análise de aspectos básicos e pouco interessantes ao primeiro olhar? Dando um exemplo de um pensamento explorativo pessoal (ocorrido durante uma bebedeira fornecida pelo companheiro dourado), hoje em dia estamos extremamente bem servidos de acessórios para o acto de andar, correr, saltar, viver. Mas recorram à imaginação incisiva e particular de elementos crucias often overlooked, e pintem uma visão de uma centúria romana, marchando quilómetros e mais quilómetros. As sandálias, certamente providenciadas pelo Estado governante, era a única coisa que separava a pele dos pés da terra árida. Parariam para um breve descanso. O soldado comum observaria que os pés estariam cheios ora de pó, ora de terra, de areia, de lama, de humidade, etc. E não pensaria mais nisso. Iriam-se deitar assim. Era um dado adquirido e um facto comum. E não só para os soldados, mas para todos, até à invenção do sapato própriamente dito. Curioso.
Sistemas, raízes, microchips, ramos, ramagens, rios, braços, veias, músculos, gordura, plástico, cera, organogramas, mapas, fronteiras, montanhas, caminhos, horizontal, vertical, agudo, grave, fricção, ondas, suavidade, linhas, frequências, correntes, corda, chuva, folhas, tubagens, sangue, célula, electricidade, vida.
Tentar ver o que acontece, os fenómenos e os elementos, que embora ínvisiveis, estão lá, e actuam sobre nós. Uma coisa fora do lugar, a indevida ocorrência, e tudo altera-se. A ocorrência é devida, portanto?
Superstição. Actua da maneira a que se virar para um lado aconteçe X (superstição). Se virar para o outro lado aconteçe Y (coincidência). A funcionalidade da superstição assenta no facto de, se acreditar nela, faço as coisas de maneira a evitar más ocorrências. Se não acreditar na superstição posso vir, ou não, a ter as más ocorrências. O bom e o mau estão sempre presentes, mas assimiladas de maneiras diferentes. A superstição é fiável então? Tanto como a coincidência.
Era uma vez um rapaz chamado Chavo. Chavo pertencia àquela elite especial, formada na sobrevivência labiríntica, dos empregados de mesa. A sua vida não a considerava muito apelativa, mas permitia-lhe pequenos luxos que o afastavam do turbilhão social que o puxavam diáriamente por todos os lados, maquinizando-lhe os sentidos. O espaço comum partilhado pela multidão anónima e por Chavo era o Café Silhouette, o seu local de emprego. Era uma superfície recuperada de um velho café popular, sendo mais uma phoenix renascida das cinzas imobiliárias. Era agora in.
Todos os dias, entrando às nove da manhã, deparava-se com as mesmas caras, que, estranhamente, eram sempre diferentes. Rugas, sinais, cabelos loiros, castanhos claros, castanhos escuros, pretos, bigodes, barbas, óculos, chapéus, bengalas, malas. Estas eram as coisas em que Chavo reparava, e pelas quais organizava o seu trabalho. Não era preciso saber mais nada para funcionar e humildemente servir. Ouve por altos as conversas dos clientes, vendo traços comuns de pensamentos colectivos, aproveitando as oportunidades concedidas para auxiliar num debate ou questão trivial, procurando sempre humildemente servir.
- “São Setenta Cêntimos se faz favor.” Indica uma colega a um cliente novo ao estabelecimento.
- “Setenta Cêntimos por um café ?! O que é que me quer fazer, levar à miséria?” retorquiu o cliente, levantando a poeira de um ar snob, apoiado pela esposa, de olhar indignado. “Não se importa de gastar uma pipa de massa em sapatos e renovações anuais da sala de estar, mas por um café levanta logo um escândalo!” pensou a empregada colega de Chavo. Óbviamente que não expressou o seu pensamento de forma selvagem, apenas sorriu e aceitou o dinheiro. Sobrevivência.
Agora Chavo, que tinha parado um momento para observar a reacção da colega, apercebeu-se de uma sombra a crescer ameaçadoramente atrás de si, pondo a mão no seu ombro.
- “Então Chavo-san, como vai o teu dia?” disse a sombra.
Era o Sr. Komoroshi, um gentleman japonês que tinha o prazer de visitar o Café Silhuete numa base quase diária. Era, portanto, parte dos habituais.
Chavo olhou longamente para o Sr. Komoroshi e finalmente respondeu – “Cá se vai não é? Um dia destes já não me vai encontrar cá para me assustar, aparecendo assim dessa maneira.”. Era, claro, uma mentira. Os planos grandiosos do jovem empregado de mesa assentavam-se eternamente em fundações frágeis, de areia e barro. O café era a única coisa certa na sua vida.
A conversa de café com o Sr. Komoroshi era sempre agradável, embuída de cor nipónica e de cultura oriental. Isso fascinava Chavo, uma cultura diferente da sua. A cultura japonesa era como sonho, um sonho acordado no real, de emoção pura e valores fortes, centrados numa auto-disciplina indestructível. Entre pedidos e contas, limpezas e simpatias, Chavo ouvia avidamente o que Komoroshi dizia. Chamava-lhe afectivamente “o Professor”, ao qual este baixava a cabeça em sinal de agradecimento.
Passado as cinco horas, hora de saída, Chavo arrumou as suas coisas e avançou para casa, um pequeno apartamento, mas alegre e sustentável. Meteu as chaves na porta, mas esta abrindo-se repentinamente escancarou-se e lá de dentro veio uma menina pequena a correr, jogando-se para os braços dele. A figura serena e apelativa da mulher encostada à porta, com um sorriso nos lábios, puxou-o para dentro. Estava em casa, e amanhã seria outro dia, o mesmo dia, mas não a mesma noite.
No ínicio desta semana deparei-me, tal como voçês, com mais um exemplo de pura estupidez Norte-Americana. Um massacre como todos gostam de ver, sentadinhos no sofá. Não vou opinar sobre as razões que fizeram o rapaz levar a cabo um massacre daquelas proporções, ou examinar o porquê daquelas mortes desnecessárias e da vítimização colateral. Para isso a minha opinião não vale de nada. Apenas esquematizarei o seguinte:
Uma Nação nova com a mentalidade de um país de Terceiro Mundo infantilizado + Fracas Leis restritivas em relação às Armas + Cultura apologiadora de Violência = Morte, a Culpabilização de Outros que não eles próprios, e uma política externa que reflecte os problemas internos, afectando o resto do mundo.
Mas o que me espanta é o bombardeamento sequencial do “why” e “how”, em que todos se fazem passar por vítimas. Os Norte-Americanos adoram a ideia de serem os good guys e nadam na vanglorização dos seus hérois, mas raramente conseguem ver a realidade do outro lado do espectro. Morrem pessoas todos os dias, nas piores das piores condições. E quando vêem imagens de crianças em África, no Médio Oriente, na Ásia, a empunharem armas, consideram-nos desumanos, inimigos da civilização. Mas se forem eles, basta adicionarem uma música inspiradora à la Springsteen e terá toda a forma de propaganda democrática americana. Assim já não são o inimigo, a ameaça. Esquecem-se é do facto de que na caça muitas vezes é o amigo que mata o amigo. Por engano claro. É sempre por engano.
Tomás J. A. Pinto
Ia Conrad, que os amigos resentidamente chamavam de John, a passear pelos caminhos tortuosos e mal ordenados de um cenário vegetalista, quando ouviu o vento gritar o seu nome. Qual dos dois não tinha a certeza, mas certamente chamava por ele. Ainda sobriamente tentando perceber, apercebeu-se de que devia parecer um louco alcoolizado ao virar-se para todos os lados, na tentativa de ver de onde saia o som que o rodava como um louco. A boca donde saira aquela voz, que passava pelas árvores e arbustros, receberia uma fúria certa. Os pássaros não ajudavam. Cansado daquela confusão, em que os seus pés pareciam ganhar vida própria, decidiu sentar-se em cima de um rochedo da cor de âmbar. Puxou do cachimbo e encheu-o, fingindo não ouvir o vento que chamava por si. No meio do fumo viu que o vento baixara, e a voz desaparecera, mas não podia deixar de sentir que estava atrasado para qualquer coisa. Empurrando o pensamento para o fundo da sua cavidade cranial, explorou a hipótese de entender se aquela voz era sua amiga. Conseguiu isto ao rebuscar o momento em que foi convocado, lembrando-se do nome que lhe fora atribuído pelo vento. Seria Conrad (para os demais)? Ou John (para os amigos)? Não tinha a certeza. A verdade era que não gostava muito do nome dado pelos amigos, em forma de rancor antigo, por ter um nome mais bonito que os deles. Conrad era sinónimo de muito trabalho para pronunciar. Ficaria John. Os amigos claramente não observaram a mudança que certas denominações fazem às pessoas. Conrad vivera até então com um método de observação e de interacção muito distintos. A sua apresentação era relativizada de acordo com o que queria deixar entrar na sua vida. Para os demais era Conrad, e para os amigos John. Assim as coisas ficavam bem divididas, e as confusões evitadas. Mas agora esta última convenção não estava a ser respeitada. A confusão entrara na floresta, e o refúgio espiritual de um homem dividido em dois deixou de o proteger. Conrad, que muitas vezes estudara a forma das árvores (as folhas, o tronco, a altura) calculou que estas já não se pareciam com paredes. As paredes isoladoras do resto. A voz penetrara, e a estrondosidade estremecera-o, desde as pernas arcadas até ao crânio, onde agora estava o pensamento amedrontado do atraso, a cair da prateleira.
Batendo com o cachimbo no rochedo cor de âmbar para o limpar, continuando a sentir os pés confusos, decidiu pôr-se a andar. Logo, o vento levantou-se, e a voz que gritava o seu nome parecia agora mais assustadora. Queria fazer-lhe mal, e certamente o embruxaria para cair numa armadilha pagã, e o seu corpo serviria de exemplo para os jovens. Contariam a história do jovem Conrad John, que não ligando às virtudes cristãs, depressa encontrou o seu fim nas garras demoníacas do paganismo. Continuou a andar, e a voz aproximava-se cada vez mais, ao ritmo que o sol descia pelos vales e as sombras cresciam. Algumas ainda tentaram agarrá-lo, mas eram só umas ramagens de um velho arbustro, com as raízes de fora. Pensou logo em regressar, visto que o seu refúgio mudara hediondamente de cara, olhando-o pelos troncos com olhos malignos, músculos rasgados num sorriso amarelo e castanho, e de voz horrível. Os avisos tinham sido vários, mas Conrad não ligara, e agora a floresta iria-o consumir. Acelerando o passo, tropecava em tudo, e quando mais rápido andava, mas rápido ficava para trás. Os avisos foram muitos, e a voz no vento fora desdenhada. A natureza tem a sua própria natureza, vingativa e inocente.
Acordou sobressaltado com as sombras de ramos velhos projectados na parede. Ainda era de noite, mas não se sentia como se tivesse estado a dormir. Tudo era demasiado fresco, como a terra madrugadora. As memórias do medo. Conrad levantou-se e olhou pela janela para a floresta. O dia e a noite não eram assim tão diferentes, apenas na personalidade, no que se pode ou não fazer. Desdobrando-se, como ele próprio, a natureza tinha as suas sombras, e a sua personalidade. Conrad não sentia medo. Apenas respeito. Sabia que aquilo que se tinha passado fora verdade, e que se fosse para ter medo, estaria morto, a servir de história moral para os mais pequenos.
Tomás J. A. Pinto
No que diz respeito ao exercício criativo e argumentativo da escrita temos sempre que manter uma mente aberta, coordenadamente funcional com os conhecimentos de argumentação e gramática que nos é acessível. Mas por vezes recorremos a fórmulas pré-concebidas e estruturalmente necessárias para apresentar o assunto e uma moral adjacente (se houver). O que não é mau. As fórmulas permitem uma organização superficial que nos ajuda a encontrar a nossa forma expressiva. Encontramo-nos na nossa escrita, e a nossa escrita reflecte o nosso pensamento.
Dou muito valor às opiniões, mesmo às contrastantes com as minhas, desde que sejam inteligentemente elaboradas e não “só porque sim”. Gosto de uma boa discussão, menos aquelas em que os limites se excedem e corre-se o risco de perder um amigo. A argumentação mantém-nos alerta e perspicazes, valores necessários a uma boa observação.
Um amigo meu uma vez disse “tem que haver pessoas más para sabermos que somos boas pessoas”. A simplicidade destas noções sociais, que estão embuídas de moral, está alíada à sua função de tranquilizar e esclareçer. Avaliamos a nossa posição no mundo, que às vezes é demasiado grande para nós (e às vezes demasiado pequeno) e podemos pensar que é muito fácil julgar, mas é mais dificil aceitar um juízo diferente do nosso. O orgulho é atacado, e mesmo que ninguém goste de o ver ferido, perante uma inegável verdade somos forçados a aceitar. A aceitação leva ao desenvolvimento mental.
A perspectiva é igualmente importante no que toca a assimilar o que nos é transmitido, pois as nossas observações diárias são um resultado de vários factores. A publicidade, a verdade dos media, o governo do país, as novelas, os documentários, os debates, são tudo métodos subsidiários da televisão (que já uma vez denominei de Rectângulo Mágico, que atrai todos os que se deixam levar pelo maravilhoso virtual). A televisão é dominante na sociedade ocidental, e quer queiramos, quer não, acabará sempre por nos influênciar, pela positiva e, cada vez mais, pela negativa. Daí a necessidade da nossa noção de perspectiva se manter pessoal, enquanto o nosso conhecimento (aliado à inteligência perceptual da realidade) luta contra as forças persuasivas e distorçantes do virtual.
As fórmulas estruturais para a escrita criativa ou argumentativa, juntamente com uma perspectiva definida, juízos de valor, uma boa argumentação e estruturação, são a nossa maneira de transmitir o nosso grito. Esse grito pode significar o quer que seja, mas tem que ser perceptível. Temos todas as ferramentas que precisamos, e não temos desculpa por não intervir nesta mentalidade global que é a sociedade ocidental. Mas também é verdade que ao mesmo tempo que nos dão a capacidade de nos exprimir, são cada vez mais os que se vão exprimir. E isso faz do nosso grito um sussurro.
Tomás J. A. Pinto